sexta-feira, janeiro 26, 2007

Crítica de teatro: Quarteto



Questões de legado

Quarteto/Shall we dance III
de Heiner Müller
co-criação de Cláudia Jardim e José Gonçalo Pais
Hospital Miguel Bombarda, Lisboa
até 03 Fevereiro 2007


O caso dos Shall we dance é particularmente curioso no percurso do Teatro Praga já que, oscilando entre o espaço experimental e o espectáculo, tem tido resultados díspares e francamente desiguais, mas servido para abrir janelas para as várias camadas que compõem este grupo. Por detrás desta ideia está a vontade de convidar elementos externos para um trabalho a dois sempre nas mesmas condições: orçamento reduzido, apresentado em sessão dupla ou tripla, livre na abordagem ao universo referencial da companhia e/ou do responsável.

Super-gorila (2005), de André e. Teodósio e José Maria Vieira Mendes é, de todos, o que melhor conseguiu autonomizar-se, dialogando com a relação que o Teatro Praga sempre teve com o texto, o lugar do intérprete e a abordagem ao espectador. Por outro lado © (2006), de Patrícia da Silva e Nelson Guerreiro, o que mais abertamente assume algum impasse criativo em que podem redundar estas propostas abertas. Quarteto, concebido por Claúdia Jardim, que traduziu com Vítor Gonçalves, e encenou e interpreta, aqui com o recém-chegado José Gonçalo Pais é a mais recente proposta. E um espectáculo a ter em conta se o Teatro Praga quiser pensar a integração destas propostas laboratoriais e individuais no seu discurso colectivo. Isto porque, em Quarteto, há, como há muito não havia no trabalho desta companhia, uma reflexão em torno do (peso) do texto, da referência e da memória.

No seu mais recente artigo para o site da Culturgest, De quem são as obras?, Augusto M. Seabra abordava questões relacionadas com o papel dos autores, o modo como estes se viam privados dos direitos das suas próprias obras, e ainda a crescente menorização da importância do legado face a “tanta proposta ‘modernaça’”. Se o crítico colocava a questão no âmbito da memória coreográfica e performática (de performance, e não de representação), o mesmo poderá, naturalmente, ser dito em relação ao teatro e à dramaturgia. Razão pela qual não haverá melhor exemplo para discutir o papel do autor do que o caso do alemão Heiner Müller que, com Quarteto, de 1980, repensou o clássico Ligações Perigosas, de Chordelos de Laclos e que, até dia 03 de Fevereiro, a actriz Cláudia Jardim apresenta no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa.

Texto sobre a morte transformada em espectáculo, Quarteto disseca, mais do que desconstrói uma estrutura formal feita de sublimes acordos, ambiguidades e erros cúmplices. Valmont e Merteuil, os dois amantes danados (mais do que condenados) tomam conta da acção substituindo-se a todas as outras figuras, principalmente a doce e inocente Cecile de Volanges, sobrinha de Merteuil, e a apaixonada e crente Senhora de Tourvel, objectos de desejo de Valmont e peões nas mãos dos ex-amantes.

O autor alemão trabalha a partir de códigos clássicos, minando Laclos com apontamentos dramatúrgicos que deslocam o texto dos salões parisienses (na primeira parte) para o clima agastado, e irreconhecível porque comum a muitos países, da falta de moral em contexto bélico (um bunker, na segunda parte). A peça, se vive de uma relação amoral com o texto de Laclos não deixa de fazer parte de uma estratégia de apropriação do sentido do autor para servir metáforas sociais, políticas e culturais que, tendo a Alemanha da guerra-fria como pano de fundo, serve também um posicionamento claro e vincado sobre a memória e a referência.

A qualidade maior de Müller não é a normalização de uma linguagem vernácula nem muito menos o exercício moderno de escalpelização de um texto não-teatral. É, sobretudo, a noção de impossibilidade de representação da palavra. Ou seja, transforma o que está escrito em matéria exposta que obriga quem a diz a ser cuidadoso na utilização da palavra. É por isso que este é um texto para actores e não um exercício de teatro-no-teatro facilmente manipulável. Um passo em falso no uso de Quarteto será fatal para a credibilidade de um texto austero, intenso e autónomo.

A inteligência do espectáculo de Cláudia Jardim está precisamente na relação quase cerimonial (para não dizer submissamente imposta) que tem com a visão de Müller. Ao perceber que pouco se pode acrescentar a um texto como este a actriz aproveita para desmontar o que já de si é desmontado. Sem adereços, figurinos ou grandes efeitos de luz, recupera a relação actor-palavra num exercício brechtiano assumidamente pouco ambicioso, porque intencionalmente cuidado. Em cena apenas um corpo quotidiano e um texto que quer passar por arrufo de namorados. E, em conjunto, nada do que ali se mostra é irrelevante.

Espectáculo de tempo e ritmo certos dá-nos Müller sem artifícios e Jardim, num doseamento correcto da sua energia e perspicácia em palco, atenta ao registo do seu par que, se se solidifica ao longo do espectáculo, nunca o faz ao ponto de dar réplica perfeita. O registo de uma actriz cujo perfil cénico – intenso, apaixonado, emotivo – se vinha moldando a diferentes encenações de Luís Miguel Cintra, Lúcia Sigalho e no seio do Teatro Praga, ao qual pertence, ganha com esta peça uma evidência, impondo (ou impondo nós) a necessidade de ir mais longe no assumir de uma marca autoral sem necessidade de protecções de outros pares, como acontecia em Agatha Christie (2005), por exemplo.

As suas opções de encenação dividem-se em duas linhas claras. Por um lado o texto que é dito em jeito de screwball comedy, com os dois actores a digladiarem-se sem verdadeiramente se oporem – uma leitura do texto, afinal, bastante perversa, para não dizer profanatória. Por outro, nos piscar de olho a algumas imagens de marca do Teatro Praga. Se as colagens na parede de nomes, autores, referências (ela a citar nomes que fizeram a peça e alguns dados históricos, ele a usar filosofia e meta-teatralidade) são uma fórmula gasta e já esperada, o uso bulímico de imagens de anjos retiradas de quadros e esculturas e fotografias de explícita pornografia, que depois são remisturadas e confundidas num caleidoscópio visual inebriante, nunca impedem uma leitura fluída do texto. Pelo contrário, antes funcionam enquanto ampliação da perversão das personagens.

E é aqui que podemos falar da relação com a referência e o legado. Num desses interlúdios (na foto), Cláudia Jardim utiliza o filme de Stephen Frears, Ligações Perigosas, para, numa das cenas entre Glenn Close e John Malcovich impôr os diálogos de Müller. Diálogos esses que dão conta do veneno que já os consome, que expõem ao ridículo aquela paixão demente. Um exemplo: (ela) “Imundice por imundice. Quero que me cuspis em cima.” / (ele) “Quero que vertais as vossas águas sobre mim.”. São diálogos que colocam em confronto três leituras: a do realizador, a do dramaturgo e a da encenadora. O modo como se apresentam, sem se diminuírem, é uma espécie de resposta ao impasse a que alude Augusto M. Seabra na crónica acima citada. Este Quarteto reconhece, integra e trabalha dentro da memória e da referência, sem a necessidade de introduzir novas pistas, de querer falar de outras coisas, sem metaforizar. E, sem ser moderno, é das propostas mais actuais e lúcidas na revisitação, sempre hierárquica, dos clássicos.

4 comentários:

Anónimo disse...

mais dos mesmos...

Anónimo disse...

FILHOS DA PUTA A TODOS OS FILHOS DA PUTA
amet

Anónimo disse...

???

Anónimo disse...

Shall we dance é um espaço e tempo criativos em que há uma co-construção e não uma construção unilateral e linear. O Quarteto não é excepção. Tendo tido a oportunidade de de assistir a este espectáculo em diferentes fases de construção e em distintos settings, possuo uma visão bastante ampla da sua força e fraqueza. Consequentemente, face à presente crítica, ocorre-me um lugar comum _ para dançar são sempre preciso dois ou melhor três, contando com a inter-relação entre os dois que lhe é indissociável . Ficamos com Shall we dance ou com o “Espectáculo de Cláudia Jardim” ?! Talvez com a inteligência do Quarteto.