sexta-feira, outubro 13, 2006

Na primeira pessoa: Anette Schäafer e Miles Chalcraft, programadores do First Play Berlin


Anette Schäafer e Miles Chalcraft são os dois programadores do First Play Berlin, um programa de live media art que se instala no teatro HAU para um fim de semana de fusão entre a performance e a tecnologia. Nesta conversa sobre a dificuldade das definições e a relação que estas peças querem desenvolver com o público, os dois programadores apresentam as suas visões acerca de um contexto criativo em permanente mudança. O programa reúne peças do Canadá, Alemanha, Inglaterra e Austrália que usam telemóveis, GPS, a internet ou realidades virtuais para pensar uma nova inserção do espectador na cidade. Conscientes da dificuldade na transmissão destas ideias como parte de um futuro próximo, Schäaafer e Chalfrat, formados em estudos teatrais e da dramaturgia, acreditam que reside na vontade de questionamento, quer dos artistas quer dos espectadores, a capacidade de renovação do discurso artístico.

Multimedia que é performance, artistas que são virtuais, espectadores que podem continuar a participar através de telemóveis... Coloca-se o problema de não sabermos para quem se dirigem estas propostas.

Miles Chalcraft
: É preciso olhar para a definição performance de forma muito lata. Isto é, naturalmente, diferente do teatro. O teatro acontece de forma mais formal, com uma rede de signos que nos dão pistas para interpretar. Se falarmos em definições clássicas de teatro ou intervenção numa galeria de arte existe sempre um público, só que aqui há um computador pelo meio. Quando programamos algo assim sabemos que estamos a entrar numa área que está no limite do teatro e da performance. Pode dizer-se até que estas são definições artificiais. Um membro do público que não tenha problemas em conceber que existem várias áreas cinzentas onde a definição não chega, ou se chega, fá-lo já combinada com outras disciplinas, será um espectador ideal para este tipo de espectáculos. O uso das novas tecnologias surge aqui como reflexo daquilo que são os usos de toda uma geração cuja concepção de um objecto performático é muito mais ampla, e que já não encontram relevância em sentarem-se numa black-box para assistir a um espectáculo.

E isso é só uma questão geracional ou um caminho natural para a criação artística?

Anette Schäfer: Ambas. Lidamos aqui com uma questão de perspectiva que transforma a nossa percepção. É uma relação diferente com estas propostas se alguém vier do contexto das artes visuais, ou das artes performativas ou ainda da media art. E isso são fronteiras muito distintas que alguns trabalhos não atravessam. Há depois outros artistas sobre os quais certamente ninguém vai dizer que o fazem é dança... mas é claro que é um problema de definição. Há artistas cujo trabalho é por demais técnico, demasiado preso à tecnologia e onde esta questão se coloca de um modo ainda mais complexo. O que nós estamos a tentar fazer é “juntar” essas áreas todas sem querer criar uma nova área.

Há o problema, sempre presente, da legibilidade das propostas.

MC: Uma resposta pode ser a criação artificial de uma definição de modo a levar ao limite essa mesma definição. Para que seja possível apresentar-se algo ao público é necessário defini-la primeiro. Muitas vezes estes espectáculos são classificados como pertencentes ao campo das artes visuais, mas isso não nos interessa, nem ao contexto das artes visuais. Nós estamos interessados em defini-las enquanto performances.

AS: Bom, na verdade, nós não dizemos que o que apresentamos são performances, mas antes que são propostas que vivem nas fronteiras da performance e da media art. Porque tratamos aqui do cruzamento destas duas realidades. E a razão pela qual nos apresentamos num teatro é porque a Alemanha tem uma grande tradição teatral. Caso contrário nunca estaríamos num teatro já que noutros países o sistema teatral funciona de outra forma.

Apresentar-se-iam em galerias provavelmente…

AS: Em Inglaterra seria no contexto de um Centro Cultural ou num Media Center. Em Berlim nunca poderíamos apresentar-nos numa galeria já que a performance não se estabeleceu num nível que permita a apresentação destas, ou mesmo de outras, propostas. É claro que a escolha de um espaço, e deste espaço [HAU] em particular, transforma o enquadramento e a recepção. E isso é uma escolha propositada mesmo que o nosso desejo seja que as pessoas se libertem destas “molduras”.

MC: Há depois outras escolhas que definem e organizam aquilo que fazemos. Não é por acaso que este é um festival de live media art. A palavra media está lá propositadamente para estabelecer uma relação directa com o mundo da performance.

AS: Mas isso é falar a partir da perspectiva da media

MC: Digamos que estamos a tentar educar os dois lados [risos]. A media art tem um verdadeiro problema com tudo o que seja performance e “ao vivo”. E muitos desses receios têm a ver com o impacto que algumas propostas podem ter, já que facilmente podem ser consideradas como net art, que é bastante diferente. Nós estamos interessados naquilo que está no meio. O nosso desejo é que pessoas que normalmente não vêm a um espectáculo num teatro possam vir aqui por causa dos aspectos relacionados com a tecnologia.

Mas como apelar aos extremos e “abandonar” o nicho de público? Para quem é que estes espectáculos vão, efectivamente, colocar novas questões?

AS: Acho que é uma batalha perdida. Há pessoas que odeiam tudo o que seja relacionado com os media. E essas não virão. O público de ópera, por exemplo, mesmo que use telemóveis e possa reconhecer as potencialidades de um telemóvel, não vem a estes espectáculos. Isso é claro. Eu acho que o programa é suficientemente amplo para apelar a outros públicos que não só o nicho, mas não tenho ilusões quanto a públicos nos extremos.

MC: Eu não concordo exactamente com isso. Não acho que o que fazemos apele a um público que já existe. Para ser completamente honesto eu não sei a quem se dirigem estes espectáculos porque, de facto, estão-se a experimentar coisas novas. Não há aqui nada de garantido e, por isso, a ideia de nicho é uma falsa ideia. É uma exploração constante e eu acho que vamos estar constantemente à procura de um público. É verdade que haverá um grupo de pessoas que se mostrarão interessadas, mas não constituem, por si mesmas, um grupo homogéneo e identificável.

Poderíamos então dizer que, a um primeiro nível, vocês estão a trabalhar para os artistas, dando-lhes a possibilidade de experimentarem, com a expectativa de que, dentro de algum tempo, já não seja necessária a criação de eventos especiais para a validação dessas mesmas propostas. De certa forma desejam que a media se torne algo convencional.

MC: Não somos nós que queremos, vai ser algo convencional.

AS: Aquilo que fazemos tem algo de pioneiro, mas nós só estamos a desenvolver uma forma de arte, não a inventámos uma vez que há artistas a fazê-lo.

MC: O que nós fazemos são ligações. Acho que uma das razões pela qual estamos interessados na performance e no aspecto “ao vivo” é porque verificamos que o teatro é das últimas disciplinas a usar certas ferramentas. Foi assim com o vídeo nos anos 70 e 80 e que para mim é sempre a referência. Uma coisa nova, uma experiência que se tornou numa ferramenta mais do que comum…por exemplo. As artes visuais já o usavam muito antes de chegar aos palcos. Provavelmente porque no teatro é preciso que “alguém lá esteja” para que o teatro aconteça. E aquilo que nós estamos a fazer é a juntar os programadores informáticos com os performers, já que há coisas que os performers não podem fazer.

Todos estes artistas vêm da área da performance e depois são “ajudados” por media artists?

AS: Não necessariamente. Há alguns que têm formação em performance e live artists. Para nós não é imperativo que venham de um lado ou de outro, porque todos eles questionam a performatividade.

MC: Esse é um dos problemas que temos com a relação entre dança e tecnologia já que é difícil conseguirmos encontrar artistas que não estejam a ilustrar-se mutuamente. Quase como se a dança estivesse a dizer que a tecnologia impede o diálogo. Da mesma forma que a tecnologia não parece muito interessada em trabalhar em conjunto com a dança.

O espaço é uma das linhas mais presentes nas propostas seleccionadas, sobretudo um espaço privado e público. Frank Abbott recorda o seu jardim, Daniel Belasco-Rogers reconstrói a sua casa de infância, Simon Heijdens observa a natureza através de uma árvore sensível aos transeuntes. E sobretudo um espaço que se quer relacionar com a cidade onde se insere, Berlim.

AS: A nossa noção de espaço mudou radicalmente nos últimos anos. Berlim é uma cidade extremamente dinâmica que desde 1988 que não teve um “momento de sossego”. Nós lidamos aqui com uma noção de espaço e aquilo que alguns dos artistas nos oferecem são olhares sobre o que os rodeia, o que os inspira e, por consequência, pode apelar ao espectador. E isso inclui a tecnologia, seja um telemóvel, projecção virtual, GPS…

MC: Há neste programa uma reflexão sobre o deslocamento, a mudança, o espaço. E isso é uma grande metáfora para compreender uma cidade como Berlim. A cidade está constantemente a ser reinventada. Desde que o muro caiu que as pessoas a reinventam, criando novos lugares onde antes eram descampados, ou encontrando soluções que devolvam a lógica a uma cidade antes dividida. Esta ideia de espaço está, naturalmente, relacionada com a ideia de casa. Onde é que é a nossa casa? Qual é que é o nosso espaço? Da mesma forma que sabemos não se tratar de uma coincidência o avanço da tecnologia e os fluxos migratórios, sobretudo na Europa. Há aqui um aspecto político claro na exploração de equipamentos que permitam um maior controlo das populações.

E é essa dimensão política que carrega as performances de um certo air du temps?

MC: É claro que essa é uma preocupação, sobretudo para os artistas da media art, porque muitos dos projectos que aparecem são orientados por linhas militantes, activistas ou politicamente comprometidas. Mas há uma massa imensa de artistas que está mais interessada em explorar essas ideias enquanto objectos artísticos, não se sentindo condicionados ou“obrigados” a responder a algumas dessas questões. De certa forma, ninguém está aqui a tomar um partido em relação à tecnologia. Os artistas estão, efectivamente, interessados na exploração da tecnologia para fins artísticos. Os Blast Theory estão interessados em criar novos produtos para as pessoas. Michele Terrain sai para a rua e observa-nos. Daniel Belasco Rogers está, no entanto, muito pouco interessado na tecnologia por ela mesma, apenas a usa por causa da progressão “animal” desta ferramenta. Os Active Ingredient faziam desenhos de mapas e a descoberta do GPS só ampliou a vontade de criarem novas realidades. Mas é verdade que [a canadiana] Michele Terrain é alguém que lida muito directamente com essas questões, ao mostrar aspectos de uma cidade a partir de câmaras de vigilância.

Ideia que acompanha uma explosão dos fenómenos de paranóia, ultra-vigilância, big brotherização, controle informático… o lado perverso da tecnologia.

MC: Eu acho que a tecnologia é só uma ferramenta. Estabelecer uma relação com alguém do outro lado do mundo, alguém que nunca vimos, é algo que não era possível há quinze ou vinte anos atrás. Dizer que a tecnologia expõe todas as fragilidades do ser humano parece-me ser levar as coisas para um extremo muito pouco condicente com as potencialidades da tecnologia.

É contudo mais fácil perceber os efeitos negativos e perversos que os efeitos positivos.

MC: Porque as pessoas adoram ver os lados negros e dramáticos de tudo. Claro que há exemplos trágicos, como os adolescentes japoneses que não saem dos seus quartos durante meses ou anos, mas não nos esqueçamos que é só uma ferramenta. O grande perigo não está no uso da tecnologia para a reflexão ou a criação, mas antes a reunião de um conjunto de conquistas para, por exemplo, um uso militarista. Odiar um telemóvel não me parece, por isso, razoável [risos].

AS: É verdade que dos artistas representados no programa não é possível dizer-se que estejam a trabalhar dimensões políticas, mas eles fazem o público experienciar processos mentais. Em ‘Ere be dragons [dos Active Ingredient], o público entra na sala, coloca um medidor rítmico no peito, deita-se, vê um vídeo introdutório e é-lhes dado um pequeno computador com um GPS incorporado. Depois sai para a rua e é convidado a andar por trinta minutos enquanto uma cidade imaginária vai sendo desenhada a partir das suas batidas cardíacas num ecrã instalado no teatro. Esta peça reflecte sobre a bioquímica do corpo, a psicologia do indivíduo e a sua relação com o que o envolve, traduzindo tudo isso graficamente. Isso é uma relação directa com a cidade, com o ritual performático, com o papel que cada um desempenha. Tem tudo a ver com jogo e com a mudança do papel do espectador. Eles são, em grande medida, responsáveis pelo caminho que cada performance toma.

MC: Estas peças permitem ao espectador a exploração do ambiente onde se inserem. Eles são uma parte activa no desenvolvimento da peça. Se, por exemplo, em Day of the Figurines , se alguém não jogar o jogo, nada lhes acontece. Com os Blast Theory sim, podemos falar de uma outra relação com a tecnologia, já que eles estão a desenvolver um novo software que terá uma outra aplicação fora do contexto da performance. Quanto aos restantes há, tão somente, uma vontade de compreender como é que a tecnologia pode transformar a criação artística.


Ler amanha entrevista com Matt Addams, do colectivo Blast Theory.

Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Roberto Cimetta Fund

1 comentário:

Pedro Zegre Penim disse...

Grande entrevista. Parabéns.