sábado, outubro 14, 2006

Na primeira pessoa: Matt Addams/Blast Theory


O colectivo britânico Blast Theory é um dos projectos mais reconhecidos na área da interacção entre tecnologia e performance. Ao longo de mais de dez anos tem vindo a construir um percurso singular através do qual questionam as noções de performatividade, ficção, envolvência, responsabilidade e jogo. A peça que apresentam no programa First Play Berlin, Day of the Figurines, usa o telemóvel para a construção de uma cidade imaginária, onde os jogadores/espectadores decidem o futuro das suas personagens. Não é nova esta vontade em explorar o modo como o espectador se relaciona com uma performance e o trabalho de um artista. Propostas como Kidnap, onde dois espectadores foram realmente raptados e permaneceram cativos durante 48 horas, ou Can you see me now? onde GPS e Internet serviam para um jogo de rato e gato, deram a este grupo uma reputação internacional. Numa altura em que o lugar da criação artística se vê ameaçado pelo uso das novas tecnologias, Matt Addams, o mais mediático dos membros do colectivo, falou com O Melhor Anjo sobre os limites da ficção, as consequências políticas de cada um e a retórica da distância, comummente aplicada à tecnologia.

Há a ideia de que o uso de tecnologia ao serviço de uma peça fez deslocar a noção de performativade para campos cujas preocupações são já outras. O vosso trabalho, no entanto, reside numa reflexão sobre a validade do discurso performático.

Para nós, que não vimos de um background performático, a questão é: porque é que precisamos de ter um discurso teatral para colocar questões sobre teatralidade e performance? Se aceitarmos a performatividade como uma construção político-social que cruza todos os aspectos da nossa vida, então a necessidade de um discurso artístico ter que se relacionar, exclusivamente, com a história da performance é questionável. E isso permite-nos pensar a nossa prática em relação ao que nos rodeia. Muita da história da performance está interessada na moldura e, por exemplo, o trabalho de [Richard] Schechner existe para o estabelecimento de um cânone para a prática experimental.

Um cânone que pode ser recusado mas não ignorado.

Todas as convenções teatrais foram já atacadas e desmanteladas sob a forma de espectáculo nos últimos trinta anos.

Mas pelo teatro ou pelo que o rodeia?

George W. Bush está a representar o papel de Presidente dos EUA, já que demonstrou ser mais convincente que John Kerry [o candidato democrata derrotado em 2004], e isso têm ramificações políticas e sociais claras, por exemplo.

Daí se poder falar de uma sobrevalorização do aspecto político em espectáculos que lidam de forma mais directa com o espectador, que confundem realidade e ficção, que usam tecnologia…

Eu considero que aquilo que fazemos tem uma grande relação com o contexto político e social, mas as pessoas são “perdoadas” se não perceberem isso. Há projectos claramente marcados por condicionantes políticas, como Desert Rain, mas outros como Can you see me now? podem ser vistos como um simples trabalho sobre o uso da tecnologia. Baudrillard dizia que vivemos num mundo científico, nada é real… e na verdade a guerra do Iraque, nos anos 90, fez combinar a morte de pessoas todos os dias na guerra, com uma espécie de ficção diária nas televisões. O que fazíamos em Desert Rain era olhar para essa fronteira entre virtual e real tentando fazer reconhecer, nesta crise epistemológica, que o avanço da tecnologia e dos media está relacionado com decisões políticas e implicações sociais. A performance era baseada nas relações pessoais entre aquelas seis pessoas isoladas cujo contacto com o exterior era apenas sonoro. As pessoas eram colocadas num cenário de guerra e depois responsabilizadas pela sua segurança e a dos parceiros. Há pessoas que deixaram colegas ficar para trás, outras que os enganaram para sobreviverem…

E isso é o reflexo de alguma da sociedade contemporânea.

A questão está em aceitar que não se consegue fazer um trabalho apolítico. Só o facto de se cobrar um bilhete para assistir a um espectáculo impede que algumas pessoas possam assistir a esse espectáculo. Portanto não é um trabalho político com um objecto político, ou politicamente comprometido, mas é um trabalho que procura problematizar algumas das relações, particularmente entre o público e artistas. Muito do trabalho que fizemos nos últimos cinco ou seis anos problematiza relações entre aquilo que o artista produz e as expectativas que o espectador tem em relação ao que é apresentado, sendo sobretudo sobre o reconhecimento de um conjunto de contradições. Nós somos artistas privilegiados, somos apoiados pelo Estado… E muito provavelmente há uma “descoordenação” entre aquilo que fazemos e as razões pelas quais somos apoiados. Mesmo que sejamos vistos, no sistema de atribuição de apoio britânico, como um exemplo nas relações entre a arte a universidade já que trabalhos em estreita relação com eles.

De que forma a tecnologia existe no vosso trabalho?

A relação entre arte e tecnologia deixa muitas pessoas erradamente entusiasmadas. Mas quando se usa a tecnologia há uma ideologia associada. Nós não fazemos publicidade à tecnologia. É sempre sobre outra coisa, sobre como as tecnologias mudaram o modo como nos relacionamos com um estranho, quais os seus objectivos. Por isso eu diria que reconhecemos a importância do uso da tecnologia.

Para chegar onde?

A nossa chegada à tecnologia parte da interacção. Tem tudo a ver com transmissões bi-laterais entre público e performer. Nós queremos desenvolver uma forte envolvência com o público. Sobretudo porque quero que um miúdo de quinze anos, que venha pela primeira vez a um evento cultural, sinta que a sua vida se transformou por causa disso. E essa é a condição à qual eu regresso sempre: dar a possibilidade de fazer expandir o mundo e a realidade de quem vê. Isto tem muito de inocência, de utópico, mas todas as discussões teóricas deixam de ser interessantes se alguém se vê confrontado com algo e considera ser algo atractivo, envolvente… Todas estas coisas são virtudes que raramente são discutidas numa performance.

No fundo querem apelar ao espectador da mesma forma que o teatro “convencional”, e de alguma forma prosseguir uma ideia de teatro enquanto objecto comunicante. Contudo, a fronteira entre realidade e ficção é uma das linhas mais fortes do vosso trabalho.

Ou então permitir uma focagem em determinados pontos que conduzem ao estabelecimento de novas relações. Em Uncle Roy All Around You, os participantes assinam um contrato com um estranho que os levará, desprovidos de quaisquer bens pessoais, para um local que desconhecem em busca desse estranho. Estará o espectador disposto a confiar em alguém que não conhece e por ele fazer todo um percurso, expor-se sem saber o que daí pode resultar? Isso é o mesmo que se passa quando nos sentamos na plateia de uma sala de espectáculos. Assinamos um contracto com aquelas pessoas, público e intérpretes, acreditando que vamos partilhar algo. Isso acontece também num evento desportivo, onde a ideia de partilha é ampliada. E não me parece credível que este tipo de relações se possam falsear. Isso faz tudo parte da aceitação da performativade. É o que o Augusto Boal tentou fazer com os seus jogos para o actor.


Talvez o exemplo mais evidente seja Kidnap, de 1998, onde raptavam um espectador que previamente tinha aceite participar. Uma das pessoas afirmou depois que sabendo que era um jogo, para ela tinha sido bem real, anulando assim qualquer possibilidade de discussão sobre quem estabelece o que é real e fictício.

Isso coloca logo a tónica da ambiguidade: o que é e não é performance. Quando fizemos Kidnap, estávamos preparados para sair de um espaço comummente reconhecido como performático, colocar o trabalho nas ruas e verificar porque canais o trabalho se disseminava. Ou seja, perceber onde é que a noção de performatidade era ainda mais difusa. Isso dá a Kidnapp a possibilidade de ser classificado como uma performance ou um happening ou um evento ou um efeito mediático.

Fruto de um fascínio pelo voyeurismo houve quem, através da Internet, exigisse que vocês fossem mais sádicos, enriquecendo o jogo com armadilhas e provas.

Eu sou muito céptico em relação ao voyeurismo e peças como Uncle Roy All Around You e Kidnap não são acerca de voyeurismo, mesmo que essa dimensão esteja, obviamente, lá. Parece-me que existem artistas fascinados com as possibilidades, não só estéticas, que a tecnologia traz ao voyeurismo. Aquilo que nós estamos sempre à procura é de uma forma de esbater as fronteiras e colocar o público numa posição de instabilidade. A razão pela qual os momentos chave da avant-guarde foram transformadores, foi porque desestabilizaram o público de tal forma que eles não puderam distinguir o que estavam a ver, atribuir um sentido, etc. Já não podemos fazer isso num palco porque um palco imediatamente constrange o que nele é apresentado.

Perdeu o sentido do tempo?

Muito do nosso trabalho é sobre o modo como uma narrativa, uma história pode fazer sentido no mundo. Acredito realmente que há vários impedimentos sobre o modo como uma narrativa pode satisfatoriamente reflectir sobre o nosso mundo. Nós não vivemos num modo linear. A performance pensa sobre isso. A narrativa impele-nos para a construção de modelos arquétipos uma vez que 99,9% da linearidade é construída ficcionalmente – veja-se como uma conversa pode ser interrompida de diversas formas -, e isso leva-me aos jogos já que estes são a forma cultural do século XX, da mesma forma que o cinema foi para o início do século XX.

Jogos esses que podem transformar o real em ficção, atenuando responsabilidades.

Uma das razões pelas quais deixámos de fazer Kidnap foi porque havia uma disparidade entre a ideia de happening e a mediatização desse happening. O espectáculo é pré-Big Brother e fazê-lo agora traria dimensões que não nos interessa explorar. Não era sobre as pessoas que podiam estar a ver na Internet e a sugerir que fizéssemos aos dois “raptados” isto ou aquilo, mas sobre os dois “raptados”. Um rapto é algo muito complexo, mesmo que as pessoas tenham deliberadamente aceite participar. Houve um caso uns anos antes em Inglaterra que teve grande influência na pesquisa para Kidnap. Um grupo de gays masoquistas foi condenado à prisão apesar de consentir tudo o que tinha acontecido. Nós raptávamos as pessoas numa rua durante o dia e isso era um dos aspectos mais importantes… o momento do rapto.

Em Kidnapp havia uma dimensão de falsidade, já que acabava em 48 horas.

Sim, essa é uma questão importante: o que é real? E a resposta pode ser: tudo é encenado, tudo é falseado, mas quando acontece contigo, não há nada de falso nisso. E nós, enquanto espectadores, nunca sabemos quais são os limites dessa falsidade. Começámos um projecto em Nova Yorq no fim de Setembro em que fingíamos estar a entrevistar pessoas. E havia toda uma encenação nesse jogo. Quando o candidato entrava no edifício havia um sem-abrigo que os assediava, quando chegavam à sala estava a uma rapariga a chorar… e as pessoas não conseguiam distinguir o que era ou não era real. Para nós é importante perceber que a existência de uma fronteira mutável entre ficção e realidade transforma a percepção e o envolvimento com o que se passa. E, por isso, é um erro observar do exterior e dizer que é falso.

O que não deixa de ser político também.

Na minha opinião certamente que não. Um dos membros originais do grupo, que entretanto já saiu, disse-me uma vez que sendo gay não precisava participar em manifestações, reivindicar direitos ou votar, porque tudo o que fazia na quarto era um acto político. Na altura tive bastante dificuldade em perceber isso, mas com o tempo percebi que o que ele queria dizer era que as relações políticas se estabelecem a partir do modo como as aplicamos na nossa relação com os outros. Nesse sentido, todo o tipo de relações íntimas são políticas. E mais políticas são as relações que estabelecemos com um estranho, já que isso identifica o modo como concebemos o mundo, igualitário ou hierárquico. Por isso os nossos trabalhos são sobre ser-se atento, responsável, ter um sentido de obrigação para com um estranho na rua, por exemplo. Uncle Roy All Around You é sobre isso e Day of the Figurines também. São jogos numa cidade imaginária onde as relações só existem se nós as estabelecermos. E isso, para mim, é profundamente teatral. Para mim o teatro é um local onde somos convidados a participar num jogo de diferenciações éticas.

Impõem limites?

Nós nunca desrespeitaríamos o público, porque ele confia em nós. Estas são pessoas que estão dispostas a tomar riscos nas suas vidas e a última coisa que merecem é que sejam expostas, por nós artistas, ao ridículo. Há valores muitos seguros como ética, sinceridade e responsabilidade que não se podem ultrapassar. Não estou seguro de poder dizer que nunca faríamos X ou Y, mas a questão seria sempre “quais as condições que justificam que faça X ou Y”. As pessoas expõe-se bastante nas novas peças e nós preocupamo-nos com elas. Para mim as pessoas que assinaram um contrato aceitando serem raptadas, nunca sabendo quando, são pessoas muito corajosas. É claro que vai sempre aparecer alguém que diz que estão carentes de atenção, que são doentes ou perversas. De cada vez que um estranho se aproxima do nosso trabalho querendo participar isso é uma mudança e uma relação política.

Estamos, portanto, no território da responsabilidade.

Ouço muitas pessoas dizer que se sentem presas, mas não as vejo a tomar decisões que as responsabilizem por uma solução. Em Desert Rain houve pessoas que se comportaram como verdadeiras bestas, abandonando os colegas e terminando o jogo em oito minutos. Mas depois tinham que esperar uns vinte minutos numa sala, sem contacto com ninguém, até que os outros terminassem. Depois encontravam-se e todos sabiam quem tinha feito o quê. Portanto, há uma exposição enorme que será atenuada pelo sentido de responsabilidade de cada um, já que todas as peças criam mundos sociais onde ninguém está sozinho.


Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Roberto Cimetta Fund.

2 comentários:

Anónimo disse...

parabens! o blog esta a ficar cada vez melhor. nao so nas entrevistas, mas tambem os teus textos comecam a ganhar carne e perder o tralala intelectualoide, sem perder inteligencia.

Anónimo disse...

adorei ler a entrevista, obrigado.

"o teatro é um local onde somos convidados a participar num jogo de diferenciações éticas."

tá dito!