segunda-feira, outubro 02, 2006

Crítica de dança: D´avant, de Cherkaoui, Jalet, Dunberry e Garaio Esnaola

Crítica de dança

Total eclipse of ideas

D’avant
de Sidi Larbi Cherkaoui, Damien Jalet, Luc Dunberry e Juan Kruz Diaz de Garaio Esnaola.
Radial System, Berlim
22 Setembro 2006, 20h30
Sala cheia


D’avant traz a assinatura de quatro jovens criadores da cena contemporânea do eixo belga-germânico: Damien Jalet e Sidi Larbi Cherkaoui, da belga Les Ballets C. de la B. e Luc Dunberry e Juan Kruz Diaz de Garaio Esnaola, ex-Schaubühne, e agora Radial System, o novo espaço que a coreógrafa alemã Sasha Waltz abriu numa antiga fábrica na margem do rio Spree, perto de Alexanderplatz, em Berlim. No entanto, se são todos “culpados” por este exercício jocoso, de entre eles é a assinatura de Cherkaoui a que mais se sente nesta peça que abriu a programação do espaço, depois de Dialogue 06 de Waltz, exercício de estilo para épater le bourgeouis em dia de inauguração.

Convêm situar D’avant no tempo e no percurso de Sidi Larbi Cherkaoui. Criada em 2002, um ano depois do atentado ao World Trade Center – o que só amplia a vontade de trazer no gesto um discurso panfletista – e imediatamente antes desse erro monumental que é Foi (vista no CCB em 18/06/04) - onde uma ideia de impossibilidade se vê metaforizada em corpos portadores de trisomia 21 -, a peça dá verdadeira conta do programa teórico e estético do jovem coreógrafo de origem judaica, amplamente suportado – legitimado, diria -, pela máquina de promoção – de propaganda – belga que são os Les Ballets C. de la B. de Alain Platel.

Vista quase cinco anos depois da sua criação, e em pleno conflito bélico-religioso – já para não considerar a coincidência que foi o cancelamento, por receios pré-conceituosos, da ópera Idomeneo, na Deustche Oper, em Berlim, uns dias depois de D’avant se apresentar -, a peça tem tanto de ridículo quanto de preocupante, já que coloca sobre nova luz uma certa ideia de dança enquanto permanente reflexo sobre a identidade do ser humano. Ideia tanto mais evidente quando um espectáculo se permite fazer de conta que uma religião (ou uma sexualidade, uma opção política, tanto faz, porque em D’avant tudo serve como exemplo) está ausente de culpa.

Os espectáculos de Cherkaoui sempre tentaram apresentar visões do mundo onde prevalecesse uma ideia de vitimação e opressão angustiante. Um discurso amplamente demagógico, contudo. Este espectáculo anuncia a radicalização da ideia de pré-apocalipse (para não dizer perpétuo Holocausto) que é Foi, exercício brutal e gratuito sobre o sofrimento.

Para D’avant seria preciso um curso intensivo em história da religião, e em particular em história do judaísmo, para, por um lado compreender o alcance de cada símbolo usado pelo coreógrafo, e por outro, para desmontar o conjunto de ideias feitas que ele perpetua. Cristo na cruz, posições de ataque e de guerra, rezas e venerações fazem parte de um exercício apologista da relação directa religião-guerra e desresponsabilização do Homem-fim da sociedade, acompanhado por madrigais venezianos que querem passar por cânticos judaicos. E, no fim, nada disto serve algum outro propósito que o alimentar de um universo limitado e circunscrito à ideia de dança enquanto combinação de várias disciplinas, como se o corpo funcionasse como filtro legitimador de cada acção. D’avant não passa, por isso, de um arremessado coreográfico que tem não consciência da vacuidade das suas intenções.

Uma prova bastante evidente desse vazio acontece quando, abandonada que está a vontade de sugerir qualquer narrativa, os quatro intérpretes, depois de jogarem à bola com a cabeça de um deles (Jalet), ao mesmo tempo que cantam (melodicamente é certo), começam a retirar dos sacos todo o tipo de adereços, arremessando-os contra os parceiros, o cenário e eles próprios: armas, cartazes, roupas, garrafas, pedras, símbolos religiosos, lata de cerveja, perucas… num caótico quadro de manifestação que deriva num estranho anti-clímax, já que desse frenesim visual nada resulta.

Outra das notas mais evidentes neste pastiche de dança-teatro é a tentativa, uma vez mais (no que ameaça tornar-se uma moda, a do “espectáculo engraçadinho que faz pensar”) de fazer humor (sempre negro, claro) através da desconstrução das personagens. Personagens que, por não chegarem sequer a ser esboçadas (e, no entanto, são muitas as que por ali passam, mas o que fica é sempre o intérprete multifacetado, incapaz de perder a pose), se tornam tão brutas quanto o cenário de fim de guerra que cobre a parede do fundo (e que na verdade são andaimes de obras abandonadas – sempre a metáfora da construção, do crescimento). Não falta também o número musical queer, desta vez com uma homenagem a Bonnie Tyler, Total Eclipse of the heart, rapidamente censurado (a culpa judaico-cristã, naturalmente, a agir).

Não é possível, no entanto, recusar a Cherkaoui, bem como a todos os outros, um domínio corporal irrepreensível, mesmo que menos evidente em Juan Kruz Diaz de Garaio Esnaola. O modo como organiza o movimento e dele parte para a criação de imagens dá à coreografia uma plasticidade ímpar, mesmo que essas sequências sejam questionáveis no seu alcance dramatúrgico e denunciem toda uma escola freak belga. Quem se recordar da criação que este ano, no âmbito do Festival de Almada, trouxe ao CCB, Zero Degrees, em colaboração com Akram Khan (mais um exemplo desse equívoco que é o multi-culturalismo), certamente perceberá porque é que é clara a distinção entre corpo/movimento e dramaturgia. No caso de D’avant, a ideia por detrás do movimento não faz, por exemplo, jus a toda a sequência inicial do corpo (de Cherkaoui) sustentado por um barrote (Cristo, mais uma vez) e, mais tarde, a comunhão de corpos e fatos (ainda que ceda ao humor com as múltiplas posições que dois corpos e dois fatos podem adoptar).

Há mais, muito mais, neste longo e penoso espectáculo sobre homens que brincam como rapazes, terroristas que se escondem para atacar os mais fracos, vítimas que acabam enterradas em campas anónimas (sim, também há lugar para os rituais mortuários judaicos)… tudo envolto numa homossexualidade latente (será?) como se de uma brincadeira de caserna se tratasse. Ver aqui qualquer ideia sobre o estado do mundo não é ser generoso, é ser ingénuo. Felizmente há obras que o tempo acabará por esquecer.


Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Roberto Cimetta Fund

14 comentários:

clica no play disse...

isto de ser provinciano é um cáca do canéco... ohhh, e dado que a ocupaçao existe, é-me de todo impossivel dar uma olhada que seja neste projectos fenómeno... enfim, um dia con/SEGUIREI.
parabens pelo teu espaço néticu- melhor anjo.
ahh a littel present:)
http://photos1.blogger.com/blogger/2841/1791/1600/z%3F%3Fe1000.jpg

Anónimo disse...

Quando se critica com fundamento abre-se um outro espectaculo nas nossas mentes.

O melhor anjo da guarda / guarda o espaco de reflexao.
r
:)

Anónimo disse...

Surpreende-me que digas que o Juan Cruz etc está fora de forma, ele tem uma força incrível!

O espaço novo da Sasha é impressionante!!!

Obrigada pelo espectáculo deles e do link para o espaço.

Continua a contar coisas!!

Anónimo disse...

O apoio da PAD FCG, Goethe e Roberto Cimetta, são um conjunto honroso. Por maiores divergências de opinião que possa haver entre os vários contribuintes, bloggers e whatever, acho que és um bom representante da liberdade de expressão. E sinto que podes representar bem, mesmo aqueles que não querem, ou não se sentem representados. Just go on with your work!!

Anónimo disse...

O apoio da PAD FCG, Goethe e Roberto Cimetta, são um conjunto honroso. Por maiores divergências de opinião que possa haver entre os vários contribuintes, bloggers e whatever, acho que és um bom representante da liberdade de expressão. E sinto que podes representar bem, mesmo aqueles que não querem, ou não se sentem representados. Just go on with your work!!

Anónimo disse...

podes usar como simbolo do blog , tas a vontade;) abraç rui

Anónimo disse...

Se calhar fui mal entendido.

Reconheço o valor dos textos do Tiago Bartolomeu Costa. Gosto da selecção e da síntese. É inequívoco que escreve bem.
E sempre nos permite saber o que se faz lá fora (mais do que nos dá a conhecer o que se faz cá dentro). Mérito lhe seja feito...

Mandei umas bocas a respeito dos apoios porque me parece paradoxal que a FCG anuncie com pompa um programa de apoio à dança (do qual este é o primeiro resultado de que tenho conhecimento), depois de ter escrito um epitáfio sumário a uma das mais emblemáticas estruturas profissionais da dança a nível mundial (é preciso citar as fontes neste mesmo blog?), e que canalize apoios para a promoção (porque é sempre disso que se trata) a estruturas, criadores e intérpretes estrangeiros.

Se calhar o autor do blog não será a pessoa certa para me explicar o porquê, mas estou certo que não levará a mal as minhas dúvidas.

Quanto mais não seja porque é directamente beneficiário de uma situação que ele próprio criticou!

Alguém sabe se o Pinto Ribeiro tem um blog?

Muitos cumprimentos do

Whatever

Tiago disse...

Caro Whatever, nao lhe deveria responder uma vez que nao se identifica, mas ja que questiona a relacao que existe entre o meu trabalho e a FCG, esclareco-o. É verdade que critiquei e critico o fim do Ballet Gulbenkian. Escrevi-o aqui na altura, voltei a escrever no fim de 2005 e este ano, um ano passado do acontecimento publiquei novo texto, originalmente publicado na revista alema Ballet-Tanz. Tudo isto nao me impediu de apresentar um projecto ao Programa de Apoio à Danca da FCG que, ao contrario de outras instituicoes, conseguiu perceber que fazia sentido que, no quadro das minhas competencias e dos objectivos do programa, fosse contemplada uma proposta que visava o estudo e a pesquisa do papel da critica. Estudo esse devidamente fundamentado e legitimado quer pelas participacoes que terei em encontros entre Setembro e Novembro em vários paises, quer nos convites para publicacao ja acertados, quer ainda, naquilo que constituiu um dos maiores atractivos deste projecto (para mim, pelo menos) a possibilidade de ir dando conta de todas essas realidades no blog. A FCG sabia muito bem o que eu tinha escrito sobre o fim do Ballet Gulbenkian, e isso nao a impediu de ver a seriedade do projecto. Quer melhor prova para uma salutar relacao entre critica e instituicoes?
Se esta é a primeira iniciativa publica de que tem conhecimento apoiada pelo PAD, isso ja nao é da minha conta. Tem a ver com a ética e a responsabilidade de cada um o anuncio dos apoios que recebe para o trabalho que realiza. Eu acho que é coerente com o apoio prestado que eu de dele devida conta. Nada disto me impede de continuar a ter posicoes criticas em relacao ao que seja. Nem tal seria admissivel no quadro de uma relacao saudavel entre critica e instituicoes.
Quanto ao mais que escreve no seu comentario, nao creio que mereca sequer resposta.

Anónimo disse...

Caro Tiago,

Deixe ver se percebi:
1. Criticou fortemente a extinção do BG;
2. A FCG substituiu o BG por um programa de apoio à dança;
3. Você concorreu ao programa para ir lá fora criticar companhias estrangeiras;
4. A FCG "conseguiu perceber" que era melhor tê-lo a si lá fora a escrever do que uma companhia a dançar em Lisboa;
5. Você está bem consigo próprio!

Escusa de responder!

A cultura em Portugal está cheia destas m....atérias!

Anónimo disse...

bem dito. isto é um fantochada total...

Tiago disse...

eu nao sei que voltas deu para chegar a essa ideia lógica de que o fim do BG serviu para me apoiar numa viagem para ir escrever sobre companhias estrangeiras. Mas sao reveladoras do discurso infantil, gratuito e completamente deslocado que tem caracterizado os comentarios neste blog. Nunca pensei que a cultura vos desse tantas ganas e vontade de ver sangue. só gostava de saber quem sao, se agem da mesma forma em relacao a tudo ou é só com este blog. também escusa de responder.

Anónimo disse...

Caro Tiago

Infantil, gratuito e deslocado porquê? Tente argumentar sem insultar! Você ainda nem se deu ao trabalho de se explicar!

De facto não tem como saber quem sou. E olhe que, se calhar, mostrar algum respeito até lhe pode trazer vantagens!

Arrisque ser honesto!

Anónimo disse...

será que arrisca?

Anónimo disse...

Uma risca de cócó pela boca abaixo (o contrário de volvo, no vulgo) era o que esta gente precisava. Continue tiago com o seu trabalho e não ligue a esta gentalha do pior...