António Lagarto (Trafaria, 1949) é um dos nomes presentes no 23º Festival de Almada com uma exposição na Escola D. António da Costa, em Almada. Até dia 18 de Julho a breve mostra, intitulada António Lagarto: Olhares Cenográficos recorda alguns dos trabalhos mais significativos deste cenógrafo e figurinista que se tem dividido pelo teatro, ópera e dança constantemente re-inventando as dimensões cénicas e figurativas. O Melhor Anjo, acompanhando o festival, recupera o perfil que o crítico Paulo eduardo Carvalho fez sobre António Lagarto para a revista Sinais de Cena nº 2, ao mesmo tempo que mostra, em exclusivo, algumas imagens do trabalho do ex-director do Teatro Nacional D. Maria II.
Lógicas visuais: António Lagarto
de Paulo Eduardo Carvalho
O que permanece desde o Ninguém é a vontade de, em cada situação, criar um espaço que possa simbolizar um texto. O espaço que se oferece ao espectador tem de proporcionar uma comunicação imediata, de adesão e conquista. (Lagarto 1994: 28)
Poucos criadores teatrais têm a possibilidade – e a capacidade – de uma estreia tão fulgurante como aquela que António Lagarto teve, em 1978, com a criação do espaço cénico para Ninguém, a revisitação fantasmática do Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, congeminada e orquestrada por Ricardo Pais. A dupla de cenógrafos (que incluía o inglês Nigel Coates, com quem Lagarto vinha já colaborando noutros trabalhos visuais) apresentava então, no programa do espectáculo, o entendimento do seu labor em termos esteticamente quase revolucionários para os tempos que, entre nós, corriam: “O espaço cénico foi concebido de modo a existir por si mesmo, auto-suficiente e introspecto na sua própria geometria de espaço, tempo e cultura. (…) O espaço cénico não é uma tradução literal de condicionalismos impostos pelo texto, é um espaço total que contém o texto e acção (…). Aqui talvez esteja o nosso conceito básico: o espaço cénico exagera a configuração fatal da acção” (Lagarto 1978).
Se então alguns entenderam a proposta cenográfica como aleatoriamente aplicável a um qualquer outro texto dramático, outros, como Joaquim Manuel Magalhães, viram nela “uma das mais notáveis propostas visuais destes anos 70”, valorizando justamente a sua autonomia e a nova rede de diálogos que estabelecia com os outros elementos e linguagens do espectáculo: “uma obra que, no plano da criação, surge enquanto objecto autónomo, algo com expressão visual por si própria em simultaneidade com a qual a peça de Garrett é feita funcionar” (Magalhães 1978: 328). Duas enormes telas – reproduções ampliadas de Herculanum, de Louis Hector Leroux – ladeavam um espaço de representação vasto e profundo, que se assumia como replicação de um idêntico procedimento utilizado numa obra fotográfica dos mesmos criadores, Dialogue du Sphinx, apresentada em 1976, na Alternativa Zero.
Foi justamente esta íntima articulação entre o trabalho cenográfico e um mais vasto investimento no campo da criação visual que se tornou possível recuperar no quadro da exposição António Lagarto: Situ-Acções, uma iniciativa do TNSJ, em colaboração com o Museu de Serralves, montada no âmbito do segundo PoNTI, em 1999, nos Arcos de Miragaia. Combinando fotografias com instalações e objectos retirados de espaços cénicos, e transferidos para novos contextos de percepção, aquela exposição – e o catálogo que a acompanhava – permitiam a revisitação de um extraordinário percurso criativo que tem explorado a ambiguidade disciplinar do território cenográfico, numa oscilação clara entre os referentes da arquitectura, da escultura, da instalação, do design e das restantes artes visuais.
Um dos conjuntos mais expressivos de trabalhos ali reunidos reportava-se, justamente, às suas colaborações com Ricardo Pais, naquela que constitui uma das mais constantes e criativas duplas do teatro português: Ninguém (1978/79), Só longe daqui (dança, 1984), Teatro de enormidades apenas críveis à luz eléctrica (1985), Anatol (1987), Fausto.Fernando.Fragmentos (1989), Clamor (1994). Dom Duardos (1996), A Salvação de Veneza (1997), Noite de Reis (1998), Madame (2000), Turn of the Screw (ópera, 2001), Castro (2003), Um Hamlet a mais (2003). Encontram-se nesta lista exemplos de verdadeiras metáforas cénicas, mas também propostas de espaços mais depurados e minimalistas, experiências mais abstractas e conceptuais ou situações de assumido pendor decorativo. Com todas as suas imensas diferenças, todos estes trabalhos revelam uma criatividade cénica atravessada por uma peculiar inquietação dramatúrgica, traduzida numa interrogação quase obsessiva do sentido dramático de cada espaço, cada objecto, cada acção, no quadro de leitura mais global proposto pela encenação: “Texto e cenografia têm que colar de alguma maneira, não como ilustração um do outro, mas como interacção que funciona em uníssono” (Lagarto 1999). É este tipo de atenção – maníaca e obsessiva, como já sugeriu Ricardo Pais (1999) – que explica que, para lá da beleza ou da funcionalidade próprias de cada projecto cenográfico, todos eles tendam sempre a exibir uma lógica visual e uma espessura que diríamos quase textual, pela forma como se dão autonomamente a ler, nas múltiplas combinatórias dos seus elementos.
Enquanto a memorável cenografia de Fausto.Fernando.Fragmentos se oferecia como uma espécie de casa do pensamento – da própria cabeça – de Pessoa, numa oscilação surpreendente entre o íntimo e o cósmico, naquela que foi uma das mais extraordinárias metáforas cénicas do nosso teatro, Clamor, por exemplo, respondia ao desafio idêntico de criar “um lugar onde emerge uma voz que se desmultiplica em sucessivos discursos” (Lagarto 1994: 28) oferecendo uma sucessão de imensos espaços vazios, negros, progressivamente invadidos por eloquentes – por vezes, grandiloquentes – elementos cenográficos, como a baleia ou a jaula de leões, para dar a ouver as palavras de Vieira, nas sucessivas estações da sua conturbada existência. O mais recente dispositivo criado para Castro, de António Ferreira, ofereceu-se como uma outra plataforma de enunciação: aqui, um espaço de representação reduzido, e ostensivamente frio, surgia desde o primeiro momento ocupado por uma floresta de troncos estriados – uma espécie de “veias sanguinárias” ou “como que seres virados do avesso” (Lagarto 2004) –, antecipando e sublinhando a funesta inevitabilidade daquela tragédia histórica. Outras poderosas metáforas cénicas foram, por exemplo, o imenso e vertiginoso poço de A Salvação de Veneza – ladeado unicamente por um conjunto de cadeiras poderosamente cenografadas – ou as duas meias luas do banco redondo de Noite de Reis, único elemento móvel, e susceptível das mais variadas combinatórias, de um vasto e desnudado espaço de representação enquadrado por um arco de luz.
As criações de António Lagarto não se têm limitado ao teatro, alargando-se aos domínios da dança e da ópera, em colaboração com outros criadores portugueses (Maria Emília Correia, Nuno Carinhas, João Grosso, Fernanda Lapa, Vasco Wellenkamp, Olga Roriz, Paulo Ribeiro) e estrangeiros (Jorge Lavelli, Alain Olivier, Roberto Cohan, Ted Branson, John Cranko, Cornelia Géiser). Situ-Acções funcionou também como uma possibilidade para vislumbrar algumas das suas criações realizadas fora de Portugal, tais como os espectáculos produzidos pelo Théâtre National de la Colline (C.3.3., de Robert Badinter, e Eslavos, de Tony Kushner) ou pela Opéra National de Paris – Palais Garnier (A viúva Alegre, de Franz Lehar).
Será ainda importante acrescentar que, à excepção de Ninguém, pelo menos desde 1984 que António Lagarto vem articulando o seu trabalho cenográfico com a quase sempre paralela responsabilidade pela criação de figurinos, alargando assim a sua intervenção a nível da dimensão visual – habitualmente muito afirmativa – dos espectáculos em que colabora: embora com variações assinaláveis, os seus figurinos tendem a prolongar a eloquência dos seus espaços cénicos, muitas vezes em gestos mais fantásticos, surrealizantes ou assumidamente histriónicos, reveladores de uma criatividade renovadamente inquieta.
Referências:
LAGARTO, António / COATES, Nigel (1978), “O espaço”, in programa de Ninguém: Frei Luís de Sousa, Lisboa, Cine-Teatro com Os Cómicos, s/p.
– – / MELO, Alexandre (1994), “O espaço cénico: Uma conversa de António Lagarto com Alexandre Melo”, in programa de Clamor, Lisboa, IAC/TNMDII, pp. 27-29.
– – / – – (1999), “Alexandre Melo entrevista António Lagarto”, in António Lagarto: Situ-Acções, Catálogo da exposição apresentada nos Arcos de Miragaia e na Capela/Fundação de Serralves, entre 27 de Novembro de 1999 e 30 de Janeiro de 2000, Porto, TNSJ, s/p.
– – / COSTA, Alexandre Alves (2004), “Cenografia e arquitectura”, Duas Colunas, n.º 8, Janeiro de 2004, pp. 6-7.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel (1981), “O jardim da mãe”, in Os dois crepúsculos: Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, pp. 327-331.
PAIS, Ricardo / RIBEIRO, João Mendes (1999), “Conversa com Ricardo Pais”, in António Lagarto: Situ-Acções, Catálogo da exposição apresentada nos Arcos de Miragaia e na Capela/Fundação de Serralves, entre 27 de Novembro de 1999 e 30 de Janeiro de 2000, Porto, TNSJ, s/p.
[texto publicado na revista Sinais de Cena nº2, Dezembro 2004, da responsabilidade da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro Edição deste número de Mónica Guerreiro e Miguel-Pedro Quadrio]
Texto e fotografias gentilmente cedidas pelos autores aos quais se agradece.
Em complemento: Programa do 23º Festival Internacional de Almada; Site com mais informações e fotografias do trabalho de António Lagarto; recensão a Sinais de Cena nº2; Crítica a Berenice; Notas sobre António Lagarto neste blog aqui e aqui; Informações sobre Ántónio Lagarto na CETbase.
3 comentários:
O Lagarto pode ter talento, currículo e história. entretanto, é uma pena que seja tão mesquinho, arrogante e narciso.
fica aqui
se quiseres linkar outra recensão àquela sinais: http://www.drammaturgia.it/recensioni/recensione2.php?id=2627
Keep up the good work
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