quinta-feira, julho 20, 2006

Abordagens ao Festival de Almada: Giorni Felici

crítica de teatro

Um optimismo sufocante
Teatro Municipal de Almada,15 de Julho, 21h30
Lotação esgotada


Um dos aspectos mais importantes trazidos pelo centenário de Samuel Beckett, que este ano se comemora, é a oportunidade de ter acesso a obras que ampliam as linhas de abordagem à obra do dramaturgo e Prémio Nobel da Literatura. Uma abordagem que tem mostrado que os seus textos não se resumem às palavras. A insistência que Beckett tinha em fazer respeitar as indicações cénicas, as didascálias do texto - intenção preservada após a sua morte - não se prende apenas com o mero respeito pela forma verbal, pela fixação do texto.

O mais interessante é, sem dúvida, descobrir que essa permanente re-apresentação das indicações cria um estilo constante dos textos e, sobretudo, dos espectáculos. Compreendo agora que o que está em causa é uma estética de cena, e não só uma reformulação dramatúrgica. O que os textos transportam consigo, através da criação das imagens, da gestão dos ritmos de enunciação e silêncio, da disposição dos elementos é uma estética de cena. Isto é visível pela extraordinária coerência imagética e estilística que atravessa obras como Krapp’s last tape, Not I, Ohio Impromptu, Footfalls, Rockaby e peças maiores como En attendant Godot, Fin de Partie/Endgame e Oh, les belles jours! (em português Dias Felizes e na versão italiana de Giorgio Strehler, à qual se reporta esta crítica, se intitula Giorni Felici), onde a extensão é tomada como tempo de repetição ou prolongamento agónico (no sentido de um conflito que se estende). A unidade estilística de Beckett ultrapassa, assim, o plano literário e configura um estilo teatral e essa identidade afirma-se a cada nova encenação e, por vezes - como me aconteceu recentemente ao ouvir o texto Na solidão dos Campos de algodão, de Koltés – parece poder servir outros textos e outras situações, como prova final da presença de um estilo, pela sua transversalidade.

Dias Felizes apresenta aquela progressão agónica, no sentido duplo de agonia e conflito interior, crítico, de impasse, de uma mulher que sobrevive ao tempo que passa. Mas o tempo repete-se, nada sucede, e cada dia deve ser tomado em si próprio. Este é, talvez, o sentido íntimo da expressão «dias felizes» que a protagonista, Winnie, enterrada num monte de areia, repete tantas vezes. À ideia de que cada dia é único e uma gloriosa oportunidade de vida, Beckett opõe outra sensibilidade do tempo, onde cada dia é igual a outro, e nesta repetição se subverte a progressão do tempo, dos dias.

De alguma forma, o optimismo a que Winnie se obriga é paralelo àquele de outra personagem literária, a Branca de Neve de Robert Walser, quando se convence a si própria a dizer sempre sim, a aceitar tudo, por opção. E nesta aceitação, nesta capitulação alegre, reside um substrato trágico, o que Niezsche designava por alegria do aniquilamento. O monólogo interior de Winnie repete-se dia após dia, com alegria e resignação, e a figuração desta forma de estar materializa-se na imagem de uma mulher de meia-idade enterrada num monte de areia pela cintura, na primeira parte e pela cabeça, na segunda parte. Deste modo, o que podia ser uma posição passageira na primeira parte, confirma-se como um progressivo afundamento daquele corpo, mais que da personagem, e só a progressão do corpo – o envelhecimento, diria eu – sinaliza a passagem do tempo.

A encenação de Giorgio Strehler de Giorni Felice que foi apresentada no 23º Festival de Teatro de Almada, foi reposta em 2004 pela companhia italiana Piccolo Teatro, numa remontagem assinada por Carlo Battistoni, e posta a circular desde então é antecedido da indicação de que se trata de uma leitura dita “optimista” do texto de Beckett. Esse optimismo passou, por exemplo, por negar algumas indicações de pausas e silêncios, dando maior velocidade ao texto que, suportado por um subtexto de alegria irónica, confere, de facto, um certo tom descontraído a uma situação tão artificial. Mas, se nos apercebemos do contraste entre o discurso festivo de Winnie e a sua situação – enterrada na areia, num tempo morto, um contratempo, onde que as palavras devem substituir os acontecimentos – a encenação orienta, na primeira parte, para uma percepção do superficial, de forma superficial. Não mais do que um ininterrupto discurso que se admira com as mais pequenas coisas, amplificando-as a gloriosos acontecimentos – como quando Willie canta -, pontuado por breves apontamentos de desengano - como a presença da pistola à frente de Winnie, apontada para si, numa clara sugestão de ameaça.

Já na segunda parte o tom superficial desaparece para dar lugar a uma Winnie exausta, esgotada, e o optimismo, de tão optimista, como que apodrece. Enterrada até ao pescoço, Winnie continua a enunciar discursos de louvor aos dias, os dias felizes que vive, mas agora atravessados de sentimentos contraditórios, pessimistas, conscientes. Se, na primeira metade, a interpretação queria mostrar-se leve e despreocupada, na segunda o registo físico e vocal assume maior artificialismo, na sequência do extremo cansaço da personagem, talvez da sua falta de ar, o desespero de Winnie fica exposto. Giulia Lazzarini, a protagonista, consegue assim uma poderosa interpretação de agonia, de contraste entre a imobilidade do tempo e a joie de vivre. Começando por um registo “superficial” consegue depois estabelecer uma passagem para o lado mais negro do optimismo, a alegria obsessiva e desesperada que se sobrepõe à realidade, para sobreviver.

Hoje, Giulia Lazzarini é a testemunha e a testamentária de dois mortos, Beckett e Strehler, que voltam à cena em jeito de comemoração. Mas se a estratégia do Piccolo Teatro é pertinente - enquanto revisitação do seu próprio reportório – mas também discutível – porque parece não discutir a encenação -, já a sua inclusão no 23º Festival de Almada como o espectáculo cabeça de cartaz não deixa de ser bem mais discutível. Não obstante a qualidade do espectáculo, e a influência do Picollo Teatro na Europa, a apresentação de Giorni Felice, enquanto reposição de um espectáculo de 1982, recoloca a mesma questão que se pôs o ano passado, a propósito de La Rose et la Hache, na versão de Carmelo Bene, pelo Ódeon – Théâtre de l’Europe, também ele reposição de um espectáculo de 1979[1], também ele cabeça de cartaz [ler crítica publicada neste blog].

Não está em causa questionar as reposições feitas pelas companhias de teatro, ou a sua programação em festivais. A qualidade impõe-se ao tempo, é certo. O que está em causa é a programação de reposições para cabeças de cartaz e, sobretudo, que isso aconteça no maior festival de teatro em Portugal e do qual se espera, precisamente, um destaque às novas tendências teatrais – como foi o caso feliz das novas dramaturgias italianas, em 2004 -, ou mesmo dos espectáculos O amor das três laranjas e O círculo de giz caucasiano, de Benno Besson (2003) e Emmanuel Kant, de Robert Planchon (2004). Uma discussão certamente mais lata já que obriga a uma reflexão sobre o papel do Festival de Almada, sobre a recepção dos espectáculos e sobre o confronto entre actualidade e história.


[1] O crítico francês Jean-Pierra Han escreveu no L’Humanité, a propósito de La Rose et la Hache: «Passionnante me semble la problématique posée par la « reprise » de Lavaudant. Son spectacle a, d’emblée, le mérite de dévoiler ce double questionnement : peut-on reprendre, quasi à l’identique, une mise en scène réalisée vingt-cinq ans auparavant ? Question qui interroge l’art même de la mise en scène et du théâtre en les désenclavant de toute notion temporelle, ce qui n’est pas le moindre des paradoxes. La seconde question que pose l’actuel spectacle est celle-ci : peut-on jouer du Carmelo Bene sans Carmelo Bene, c’est-à-dire sans sa dimension histrionique et narcissique (car il y avait de cela chez lui)?»

Pedro Manuel

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