segunda-feira, julho 17, 2006

Abordagens ao Festival de Almada: Solidão nos campos de algodão

crítica de teatro

Território marcado
Na Solidão dos Campos de Algodão
Pierre Boulay/Compagnie du Tournesol
23º Festival de Teatro de Almada
Culturgest, 11 de Julho, 21h30
sala cheia

A acção de Na Solidão dos Campos de Algodão, peça escrita por Bernard-Marie Koltés em 1985 é conhecida: dois homens cruzam-se num espaço indeterminado, num certo momento, e o inesperado contacto vai transformando-se num encontro. O crítico e teórico francês Patrice Pavis nota esta unidade de tempo, espaço e acção como uma marca de dramaturgia clássica, mas que neste texto progride de forma diferente, sem picos dramáticos e sem desenlace. De facto, o que orienta a progressão do diálogo é um não-dito, um segredo, um motivo oculto. Dois homens encontram-se, um pode desejar, o outro pode satisfazer o desejo, cliente e dealer, mas sem objecto de desejo definido pelo texto. Esta falta primordial retira ao encontro a sua dimensão prática e comercial, deslocando-o para o plano do puro confronto.

Desprovido de conteúdo o negócio expõe a sua estrutura formal, argumentativa, e projecta o interesse da relação para a simples relação entre seres. Desta forma, escapa ao modelo clássico, mesmo filosófico, de dialéctica argumentativa. O que resta, então, são dois longos discursos pessoais, do cliente e do dealer que evoluem ao ritmo da pergunta e da resposta, encontrando-se aí para logo divergir cada um no seu sentido íntimo.

A acção é concentrada neste confronto argumentativo algo surdo de dois desconhecidos que, só aparentemente se vão revelando, e assemelha-se à deriva literária em torno de sensações e memórias. O texto parece ser, na verdade, tudo aquilo que passa pela cabeça do cliente e do dealer durante um negócio a que não assistimos, numa exposição da intimidade de cada um, mas escrita na sua extensão. O texto impõe uma acção de crise, isto é, de suspensão e impasse.

E é na dimensão do olhar, do espectáculo, que o texto apresenta as maiores armadilhas, na encenação de uma acção dialogada (uma marca clássica) e de uma crise, uma aporia insolúvel em torno de um objecto desconhecido (uma marca contemporânea) que age como uma sombra - que evolui no interior de cada personagem e ao longo da relação entre os dois - , funcionando como revelador sem nunca se revelar.

A cenografia de Jean-Cristophe Lanquetin interpreta o texto na sua dimensão de espaço disponível na sequência de uma leitura cénica de Philip Boulay que privilegia a enunciação do texto. Este espaço de relação, vazio e aberto, é materializado através da implantação das plateias – o que, de certa forma, promove um encontro visual entre espectadores, mesmo que transversal –, da instalação de um muro de plástico transparente que servia melhor os propósitos do desenho de luz – reflectindo-a com intensidade – que a da transparência como conceito visual. Suspensa na teia existe uma estrutura semelhante mas mais pequena, que reforçava a ideia de delimitação de espaço sem intervir directamente em cena, assumindo-se antes como comentário exterior da cenografia a si própria, expondo o seu conceito de espaço delimitado, mas aberto de um dos lados, nunca resolvido. Assim, a cenografia sugeria delimitações da cena para a criação de um espaço de jogo.

Outra das noções da concepção do espaço cénico – e retirado do texto – é a ideia de linha recta, materializada na direcção do cliente que aparece de um lado e se dirige à porta de acesso ao palco da Culturgest, sempre aberta. Desta forma, a cenografia nunca intervêm no espaço de cena, limitando-se a definir o território do encontro e a sugerir a obrigação ou possibilidade de fuga. Dentro deste espaço de jogo, cabe aos actores definirem os seus territórios. E é esta definição que é vaga no espectáculo de Boulay.

A marcação parece ser orientada mais em função de relações de visibilidade entre as plateias ou de distância, do que de uma clara definição de territórios e a possível transformação ou corrupção desses espaços. Numa concepção de espectáculo que se concentra na apresentação do texto, mais no que na sua re-apresentação, a presença os actores implica modos de afirmação dessa presença, para além do discurso verbal. E neste domínio, a direcção dos actores (Diogo Dória como cliente e Victor de Oliveira como dealer, na foto) parece não ter explorado as potencialidades e energia de cada um: para além dessa definição de territórios, sentia-se uma certa falta de partitura rítmica que pudesse abrir espaço de expansão da presença das personagens, alguma flutuação das formas de enunciação e, sobretudo, os momentos da subtil intervenção musical, que actuavam ora em contraste – o que podia ser bom mas não era explorado - ora em consonância de registos melancólicos, sublinhando passagens poéticas do texto, numa estratégia que atraiçoava a secura do texto e a simplicidade – acertada – da concepção do espectáculo.

Pedro Manuel

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