segunda-feira, junho 12, 2006

À volta do Alkantara (II): Sobre criação


Sobre criação
uma conversa informal com Elisabete França, Inês Jacques, João Galante, Maria João Guardão, Mark Deputter, Mónica Guerreiro, Patrícia Portela e Vera Mantero conduzida por Gil Mendo e Maria de Assis a partir de uma ideia de Tiago Bartolomeu Costa. Culturgest, 30 Maio 2006

Recentemente perguntaram-me num debate em Toulouse como caracterizaria a dança portuguesa (e de alguma forma que estendesse isso à criação contemporânea nacional, uma vez que o debate era sobre a indisciplinariedade das artes). Queriam sobretudo que dissesse algo que correspondesse a alguma imagem mais passadista do país que continua a ser perpetuada fora das fronteiras (muitas vezes com culpas que só se podem atribuir aos próprios portugueses): uma relação difícil com o corpo que surgia de um puritanismo e forte pendor religioso, uma linguagem contemporânea limitada ou uma dificuldade em estabelecer pontos de relação com as correntes e movimentos europeus. Ora, qualquer crítico ou espectador mais atento consegue desmontar esta ideia facilmente. Mas a pergunta era bem intencionada dada ser inserida num festival que procurava (e promovia) uma hegemonia artística para os países do sul da Europa, ao mesmo tempo que tentava circunscrever as mais valias de cada um deles.

Veio a pergunta a propósito de um espectáculo mistermissmissmister de Ana Borralho e João Galante cuja apresentação havia sido cancelada nesse mesmo festival. Por censura, diziam os criadores. Por necessidade de redefinir e re-enquadrar o festival nos objectivos e estratégias artísticas, políticas e financeiras da região. Enquanto o vídeo do espectáculo passava em projecção numa das paredes do auditório, eu tentava desmontar essa ideia de enclausuramento do corpo. Era difícil competir com os corpos dos performers que nús e transvestidos fixavam o olhar na audiência em poses mais ou menos lânguidas, mas suficientemente perturbadoras para perderem todo e qualquer erotismo. Não sei se fui claro na explicação, mas o que sei é que deixámos de falar de identidade para passarmos a discutir a necessidade de identificação.

Há algo que temos como certo: a diversidade na criação contemporânea nacional não é um handicap, é uma vantagem. O facto de podermos individualizar os discursos deve ser visto como uma oportunidade para pensarmos o modo como no mesmo contexto surgem propostas que abrem novas perspectivas sobre a relação quotidiano-criação. Nos últimos anos assistimos à apresentação de espectáculos que, em regra, fogem àquilo que mais facilmente identificaríamos como fazendo parte das definições convencionais.

Em entrevista publicada neste blog no passado mês de Novembro, João Fiadeiro dizia que vivíamos em Portugal uma estranha e especial condição do autor, onde o lado artesanal se sobrepunha ao profissional. Ou seja, que não havia uma verdadeira concessão às lógicas de programação nem uma grande vontade em ser porta-estandarte de slogans, sejam eles artísticos, sociais, políticos ou culturais.

Devemos então colocar a questão sob um outro ponto de vista: como nos vemos e o que damos a ver? Em que medida é que contribuímos para a noção de periferia? E em que medida é que aquilo que se está a fazer é assim tão específico que impede um relacionamento estreito entre criadores, crítica e público?

Se é certo que não tenho respostas para todas as perguntas, é certo também que o facto dos criadores nacionais terem começado a estabelecer estratégias independentes abriu o campo das possibilidades de interpretação. Pense-se em Patrícia Portela, que a partir de uma exploração da circulação internacional começou a criar problemas na definição do seu trabalho: teatro, dança, performance, o corpo, a presença, as responsabilidades dos envolvidos? Perguntas e mais perguntas que não permitem uma resposta fixa. Outro exemplo ainda: os concertos de Vera Mantero são coreografias cantadas? Como é que se constrói uma identidade a partir de objectos que escapam ao que deles esperamos?

Este encontro serviu, precisamente, para pôr em cima da mesa tópicos de discussão que atravessam não só os criadores, mas também os programadores e os críticos. Em que medida é que no circuito habitual que constrói uma memória colectiva existe espaço para a identidade individual?

Corpo, espaço, tempo, género, definição, fronteira, responsabilidade, recepção, transferência, geração, alheamento, compromisso… e na origem disto tudo, a criação no feminino. Retórica aparente ou não?

O encontro, feito em colaboração com a Culturgest e a Ar.Co, contou com a presença de Elisabete França, Inês Jacques, Patrícia Portela, Vera Mantero, Mark Deputter, João Galante, Mónica Guerreiro, Tiago Bartolomeu Costa e Maria João Guardão, tendo sido conduzido por Maria de Assis e Gil Mendo. Dele será extraiu um excerto de audio e um preview em vídeo para exibição no blog, estando a ser preparada a transcrição e edição do encontro para posterior publicação.

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