foto: Patrícia Almeida
Escrever sobre o que se passou durante o primeiro Case Study nasce da persistência. Como fazer com que algo circule, ainda aqui, agora? A própria acção que estou a efectuar (escrever, copiar, colar, relembrar-me) é extremamente problemática, diria improvável. Traduzir, fazer uma translação do que fazia sentido numa disposição particular, noutro arranjo totalmente diferente, não envolve apenas uma diferença de escala. É aqui que estou, foi onde cheguei, mas é igualmente o espaço desta folha, deste teclado, que também são filtros… É toda uma rede de circulação que não funciona mais nestes espaços exíguos.
Mas isso tem pelo menos o mérito de tornar necessária esta questão que abordámos no início deste trabalho: a do “sentido” desta circulação. Talvez não fosse tanto a questão “qual é o sentido” que nos preocupava mas sim “o que é que significa colocarmo-nos a questão do sentido”. Ao jogar com as palavras sabíamos que não seria tanto o sentido / significação para o qual nos devíamos dirigir, mas mais para o sentido / direcção. Não se tratava de excluir o primeiro em detrimento do segundo, mas mais de privilegiar o segundo, sabendo que a significação estará sempre lá, como um rasto, indelével. “Buscar o sentido”, podíamos dizer ao indicar o gesto de uma mão, como para me fazer compreender, um local no palco, como que para indicar que o sentido passa por lá, por um investimento físico, qualquer que ele seja, mas situado ao lado da linguagem.
No absoluto, temos de nos afastar da esfera literária ou linguística, para procurar do lado das matemáticas. A linguagem acarreta sempre um algures, convoca sempre o que não está lá e submerge sob a referência o que lá se encontra, logo privando-nos do que é totalmente unívoco e suficiente em si mesmo. É para aí que se deve pender para descrever em que consistiu o primeiro Case Study, para encontrar um equivalente aceitável. Do sentido ao sentido. Talvez seja sintomático que durante esta etapa do trabalho, toda uma parte oficial do discurso habitual surja como que rasurada, esquecida… Todo o meta-discurso sobre a Composição em Tempo Real, elaborado após tantos anos, foi esvaziado, como se tivesse sido digerido, sedimentado, como se continuasse a circular para além de qualquer formulação.
Traduzir sem trair, seria deslizar de um plano a outro. Reportar a divisão dos pontos de um compasso. Mas nada é menos geométrico do que o que acabo de fazer. É o exercício arriscado do resumo; para evitar toda a traição, seria necessário percorrer de novo estas três semanas? Ora, sabemos hoje, porque o experimentámos e praticámos, que é impossível retomar aquilo que se revelou uma vez, ou pelo menos que não sabemos ainda fazer…mas sabemos igualmente que há qualquer coisa a resolver e essa é, ao que parece, a pista mais provável que vamos explorar.
É um trabalho completo. Então como é que o podemos cortar agora? Como dar a vê-lo de novo? Por agora, tropeçamos nas palavras, inventamos fissuras, anfractuosidades. Se o caminho é diferente, existem poucas hipóteses para que cheguemos todos ao mesmo local, ainda mais se o ponto de vista mudou radicalmente: sou eu e só eu o centro do sistema, sistema que era constituído por um conjunto de espaços à vez heterogéneos e conexos e em perpétua reconfiguração (indivíduos, espaços, objectos…).
A minha posição actual não é, no entanto, idealmente estável e confortável. Tudo isso se torna mesmo vertiginoso quando procuro determinar exactamente de onde falo. De facto, estou neste preciso momento na efectuação: recordar-me e escrever, um e outro alimentando-se reciprocamente. Mas estou igualmente num ponto de vista de análise crítica: o que escrevo é válido, tem um sentido, e é mesmo possível efectuar esta acção. Dentro e fora ocupo pelo menos dois espaços ao mesmo tempo. Vejo-me no processo de efectuar um eixo.
Ora no geral, o trabalho do Case Study e da Composição em Tempo Real permitem evitar este tipo de impasses. Identificar o lugar de onde partimos, de onde se fala. Não se trata de um ponto fixo, mas sobretudo de um ponto que circula sobre um vector cujas extremidades pudessem ser por exemplo: sentido / direcção ou análise / efectuação…. a determinar…
Acreditei durante muito tempo, já que se formulavam enunciados, que se tratava, de algum modo, de jogar com as palavras, fazer malabarismos com os paradigmas a os sintagmas. “Bebo água” poderia tornar-se em “Ele bebe água”: figura de eco ou ainda “Eu cuspo água”, derivação modal, “bebo todos os líquidos nesta sala”, derivação central. Assim de repente…Como um catálogo de tropos, material de base para virtuosos.
Não me enganava realmente, é um meio muito eficaz. Mas chegado a um certo ponto, tinha de encontrar um meio de desistir de uma abordagem escolar, do olhar do mestre em que nos tornámos, por nós mesmos. É o trabalho que se começou no primeiro Case Study… Não evacuar a linguagem, as palavras, mas tentar ver o que se passa depois, além, depois de tudo estar dito.
Participante do Case Study #1 e #2. Desenvolve trabalho no domínio teatral e coreográfico a partir de estágios com João Fiadeiro, Maria La Ribot, Claudia Triozzi, Olga Mesa, Emmanuelle Huynh, entre outros. Paralelamente prosseguiu uma pesquisa universitária sobre Poesia Sonora e Técnica e redige artigos para diversas revistas musicais e recentemente para a revista francesa Mouvement. Esteve igualmente na origem da editora de música experimental Even Stilte.
[texto publicado na newsletter nº2 da Re.Al, gentilmente cedido pelo autor e pela Re.Al, a quem se agradece]
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