Crítica de teatro
Teatro estúdio Mário Viegas, 14 Junho, 21h
Lotação esgotada
A fronteira da dor
Ao princípio, e para quem não conhecer o trabalho dos Forced Entertainment, dizer-se que The World in Pictures (São Luiz, 12 e 13 Junho) e Exquisite Pain (Teatro-Estúdio Mário Viegas, 14 e 15 Junho) saíram da mesma companhia parece estranho. Mas se os espectáculos divergem na forma e no conteúdo, partilham uma mesma ideia de experimentação teatral feita a partir da evocação: político-social em The World in Pictures, emocional em Exquisite Pain.
É verdade que este peça de câmara abre uma nova linha no trabalho da companhia inglesa, por abandonar a criação colectiva de uma dramaturgia optando por circunscrever a acção, a cena e a intenção à exploração do livro não-teatral (mas altamente performático) da artista Sophie Calle. Na obra homónima, terminada quinze anos após o seu início, Calle explora o masoquismo do fim de uma relação idealizada, intervalando o seu diário com confissões cedidas por amigos e conhecidos. Feito num processo expiatório, o livro inverte a (auto) biografia e a ficção, transformando, por comparação, o sofrimento de Calle e as histórias dos outros numa parábola sobre o processo de dor, de perda e desilusão. Posto sob a forma de objecto público, deixamos de ler “a verdade”, para lermos “uma hipótese de verdade”.
O dispositivo cénico aponta precisamente para esse não-destrinçamento da fronteira realidade/ficção. Interpretado por Cathy Naden e Robin Arthur, a dramaturgia proposta pelos Forced Entertainment leva até ao limite esse confronto. Naden lê, brilhantemente, os textos de Calle, Arthur relata os outros. Entre a interpretação de um e outro há um mar de distâncias e contradições que ampliam essa ficcionalização dos relatos. Se Cathy Naden assume o discurso feminino e se encarrega de dar corpo a uma estranha forma de auto-flagelação – os dias de Calle existem conforme a distância da separação: há X dias o homem que amava deixou-me -, Robin Arthur procura registos vários para as histórias, buscando na inconstância emocional dos relatos as diferenças que os separam.
Assistimos assim a um duelo prisioneiro de uma projecção de dor ideal; uma competição onde a crueza das palavras, o silêncio do eu magoado, a frieza da solidão promovem a exposição descarnada de sentimentos que querem ultrapassar outros sentimentos. Exquisite pain pode ser um exercício sobre a retórica da dor (quem sofre mais?), mas não é, de todo, um espectáculo piegas. Em alguma altura somos levados a ter pena de Calle ou dos outros. E o reflexo fácil da história pessoal (a nossa) também não faz deste uma espécie de catarse colectiva sobre a dor. Estamos, efectivamente, no território do conhecimento sobre os limites da resistência. Até onde nos identificamos com a dor? Até que ponto podemos reclamar nessa dor a razão de ser do impasse por ela sugerido?
Ao não propor qualquer artificio para lá da leitura (ideia que seria evidente quando estamos perante uma leitura parcial, já que nunca sabemos as razões de quem deixou, de quem magoou), o espectáculo obriga a uma reflexão não só sobre a ilusão cénica, mas também sobre o modo como se encena a dor. Trata-se aqui de saber que não pode haver poesia, lirismo ou magia quando tratamos de realidade. Mesmo que, quando posta em cena, se torne ficção. A pungência das palavras de Calle, o confronto com as histórias dos anónimos, o reflexo pessoal que isso pode induzir, e as fotografias que acompanham os relatos (breves apontamentos simbólicos que fixam a memória, mas não a limitam) fazem parte de um dos mais fascinantes objectos dados a ver neste festival. Precisamente porque apresentando-se limpo de especulações performáticas, é um trabalho sobre a representação. Da dor e do confronto com essa dor.
É verdade que este peça de câmara abre uma nova linha no trabalho da companhia inglesa, por abandonar a criação colectiva de uma dramaturgia optando por circunscrever a acção, a cena e a intenção à exploração do livro não-teatral (mas altamente performático) da artista Sophie Calle. Na obra homónima, terminada quinze anos após o seu início, Calle explora o masoquismo do fim de uma relação idealizada, intervalando o seu diário com confissões cedidas por amigos e conhecidos. Feito num processo expiatório, o livro inverte a (auto) biografia e a ficção, transformando, por comparação, o sofrimento de Calle e as histórias dos outros numa parábola sobre o processo de dor, de perda e desilusão. Posto sob a forma de objecto público, deixamos de ler “a verdade”, para lermos “uma hipótese de verdade”.
O dispositivo cénico aponta precisamente para esse não-destrinçamento da fronteira realidade/ficção. Interpretado por Cathy Naden e Robin Arthur, a dramaturgia proposta pelos Forced Entertainment leva até ao limite esse confronto. Naden lê, brilhantemente, os textos de Calle, Arthur relata os outros. Entre a interpretação de um e outro há um mar de distâncias e contradições que ampliam essa ficcionalização dos relatos. Se Cathy Naden assume o discurso feminino e se encarrega de dar corpo a uma estranha forma de auto-flagelação – os dias de Calle existem conforme a distância da separação: há X dias o homem que amava deixou-me -, Robin Arthur procura registos vários para as histórias, buscando na inconstância emocional dos relatos as diferenças que os separam.
Assistimos assim a um duelo prisioneiro de uma projecção de dor ideal; uma competição onde a crueza das palavras, o silêncio do eu magoado, a frieza da solidão promovem a exposição descarnada de sentimentos que querem ultrapassar outros sentimentos. Exquisite pain pode ser um exercício sobre a retórica da dor (quem sofre mais?), mas não é, de todo, um espectáculo piegas. Em alguma altura somos levados a ter pena de Calle ou dos outros. E o reflexo fácil da história pessoal (a nossa) também não faz deste uma espécie de catarse colectiva sobre a dor. Estamos, efectivamente, no território do conhecimento sobre os limites da resistência. Até onde nos identificamos com a dor? Até que ponto podemos reclamar nessa dor a razão de ser do impasse por ela sugerido?
Ao não propor qualquer artificio para lá da leitura (ideia que seria evidente quando estamos perante uma leitura parcial, já que nunca sabemos as razões de quem deixou, de quem magoou), o espectáculo obriga a uma reflexão não só sobre a ilusão cénica, mas também sobre o modo como se encena a dor. Trata-se aqui de saber que não pode haver poesia, lirismo ou magia quando tratamos de realidade. Mesmo que, quando posta em cena, se torne ficção. A pungência das palavras de Calle, o confronto com as histórias dos anónimos, o reflexo pessoal que isso pode induzir, e as fotografias que acompanham os relatos (breves apontamentos simbólicos que fixam a memória, mas não a limitam) fazem parte de um dos mais fascinantes objectos dados a ver neste festival. Precisamente porque apresentando-se limpo de especulações performáticas, é um trabalho sobre a representação. Da dor e do confronto com essa dor.
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