Crítica de teatro
pelos Forced Entertainment
São Luiz - Teatro Municipal
13 Junho 2006, 21h
Sala a dois terços
A espuma dos dias
por Pedro Manuel
Já aconteceu perguntar-me sobre o tempo que passo em espectáculos. Que é tempo de vida e que esse tempo não deve, não pode, ser desperdiçado. Que se ali estamos, espectadores e actores, que esse momento pode, deve, ser uma oportunidade de partilhar vida e tempo em conjunto. The world in pictures caracteriza-se como um espectáculo sobre essa experiência do tempo. A partir da narração da História do Homem (assim, com Maiúsculas) desenvolve-se uma noção de duração e perspectiva histórica num registo teatral irónico, falível e disperso que pretende expor a condição perene do homem face à história mas, ao mesmo tempo, sugerir a sua oportunidade de intervenção.
No princípio era o nada. Um palco despido e um grupo de teatro que vem dar apoio a um dos seus actores (Jerry Killick). Porque é importante saber começar e porque os actores costumam falhar. Depois de cada um dos colegas dar uma palavra de apoio, Jerry fica sozinho na cena deserta. E começa a contar a história de um passeio mas por uma narração que se vai tornando indecisa e se prolonga até nos perdermos no percurso. A pouco e pouco, o actor fica desinvestido da presença que o resto do elenco lhe transferiu e que o início do espectáculo favorecia. O início da história do mundo começa por uma cena falhada. Mas, ao mesmo tempo, esta descrição acaba por funcionar como a primeira abordagem a um mundo em imagens (world in pictures), descrevendo os locais e a perspectiva de quem passa. Depois, começa o circo.
A maior parte do espectáculo serve o propósito de contar a História do Homem (assim, com Maiúsculas). A convenção estabelecida é a de existir uma narração que ambiciona ser informativa e simples mas que é continuamente ameaçada pela intervenção dos actores. A re-apresentação dos momentos da história do mundo começam por suceder por ordem cronológica mas, com o tempo, acabam por se confundir, misturar, interagir: os homens das cavernas mexem em computadores, os romanos passeiam-se entre personagens da idade média e, no fim, a própria narração do sec. XX acaba por ficar truncada, reduzida, atalhada. A bem intencionada narração da história do mundo acaba por ser corrompida por esta indistinção pós-moderna, o cruzamento e contacto de épocas distintas, a sobreposição de estratos históricos, sobrepondo-se e influenciando-se.
Esta dinâmica materializa-se, por exemplo, através da parafrenália de objectos, figurinos e maquinaria que vão progressivamente ocupando a cena vazia, até a preencher numa instalação confusa de referências sobrepostas onde a possibilidade de uma leitura linear do espaço ou da acção dos intérpretes se vai dispersando em intervenções cada vez mais divergentes. A espontaneidade aparente dos intérpretes começa a impor-se à marcação da história/ do teatro, à linearidade da flecha do tempo e da acção dramática de representação. Este é o momento central do espectáculo, mas a sua longa duração acaba por ameaçar a sustentabilidade da cena, ainda que apoiada num registo de entretenimento rápido, muito dinâmico, visual e sonoro. Ou seja, a duração desta cena funciona em função da última parte, retomada por Jerry Killick, mas durante a sua duração acaba por tornar-se cansativa e desconexa.
No entanto, há uma dupla leitura que pode ser feita da extensão desta cena central. Por um lado, pode tratar-se de voltar a assumir um princípio marcado e seguro que desenvolve para uma cena falhada, no que isso implica de distanciamento e ironia sobre o esforço de entretenimento do teatro. Por outro lado, como vimos, a noção de história que aqui se joga é a partir de uma leitura contemporânea, marcada pela indistinção de conteúdos históricos. Um exemplo disso, para além da heterogeneidade dos elementos cénicos, é a estrutura da narração histórica. Tal como estamos habituados a pensar na história, a narração dos primeiros factos é espaçada por grandes períodos de tempo e, à medida que nos aproximamos do sec. XX, esse espaçamento vai reduzindo. Começa-se a pensar por décadas, anos, acontecimentos. Essa proximidade histórica implica um abrandamento da narração histórica. O mais distante conta-se num instante, o mais próximo demora mais tempo a contar. E é esta gestão da duração que acaba por justificar a extensão da história do mundo contada por imagens que se sobrepõem e misturam.
Da mesma forma que antes, o palco vai sendo esvaziado à medida que Jerry dá continuidade à história do mundo mas, agora, segundo dois novos critérios: a duração e o sujeito. Jerry pega nos acontecimentos mais recentes do início do sec. XXI e dirige-se directamente ao público para um exercício de memória que começa no dia anterior, depois na hora anterior ao espectáculo, nos minutos anteriores ao espectáculo, nos minutos anteriores àquele mesmo momento. Mas este exercício de consciência histórica continua para além do tempo presente e estende-se ao futuro, dali a uma hora, já fora do teatro, dali a uma dia, já esquecidos daquele espectáculo, dali a uma década, quando alguns de nós já estiverem mortos, dali a um século, quando os nossos filhos estiverem mortos, dali a milhares de anos, quando nem esta cidade existir. É neste ponto, também, que influi o segundo critério, o sujeito, a sua experiência e consciência do tempo histórico, hic et nunc. Se alguma moral for dada a aprender, é da absoluta finitude humana e da sua estranha relação com a história, que trazemos connosco e que diariamente construímos. Se algum conselho houver a aprender é o de que podemos ser interventivos na história (sentido político) e o de que, no limite, não há outra história senão a que passa por nós (sentido existencial da experiência e consciência de história e, ao mesmo tempo, sentido ficcional da narrativa histórica).
Por outro lado, através desta reflexão sobre o tempo, é sugerida uma consciência do tempo do espectáculo, o tempo do teatro que é coincidente com o tempo da vida, numa distante evocação dos princípios – opostos – do Classicismo francês que reclamava a coincidência dos tempos para uma perfeita ilusão da estória e não, como aqui, da encenação da história.
Contexto:
Ler diário do processo criativo de The World in Pictures
Ler Diálogo Conjunto Forced Entertainment + Teatro Praga
No princípio era o nada. Um palco despido e um grupo de teatro que vem dar apoio a um dos seus actores (Jerry Killick). Porque é importante saber começar e porque os actores costumam falhar. Depois de cada um dos colegas dar uma palavra de apoio, Jerry fica sozinho na cena deserta. E começa a contar a história de um passeio mas por uma narração que se vai tornando indecisa e se prolonga até nos perdermos no percurso. A pouco e pouco, o actor fica desinvestido da presença que o resto do elenco lhe transferiu e que o início do espectáculo favorecia. O início da história do mundo começa por uma cena falhada. Mas, ao mesmo tempo, esta descrição acaba por funcionar como a primeira abordagem a um mundo em imagens (world in pictures), descrevendo os locais e a perspectiva de quem passa. Depois, começa o circo.
A maior parte do espectáculo serve o propósito de contar a História do Homem (assim, com Maiúsculas). A convenção estabelecida é a de existir uma narração que ambiciona ser informativa e simples mas que é continuamente ameaçada pela intervenção dos actores. A re-apresentação dos momentos da história do mundo começam por suceder por ordem cronológica mas, com o tempo, acabam por se confundir, misturar, interagir: os homens das cavernas mexem em computadores, os romanos passeiam-se entre personagens da idade média e, no fim, a própria narração do sec. XX acaba por ficar truncada, reduzida, atalhada. A bem intencionada narração da história do mundo acaba por ser corrompida por esta indistinção pós-moderna, o cruzamento e contacto de épocas distintas, a sobreposição de estratos históricos, sobrepondo-se e influenciando-se.
Esta dinâmica materializa-se, por exemplo, através da parafrenália de objectos, figurinos e maquinaria que vão progressivamente ocupando a cena vazia, até a preencher numa instalação confusa de referências sobrepostas onde a possibilidade de uma leitura linear do espaço ou da acção dos intérpretes se vai dispersando em intervenções cada vez mais divergentes. A espontaneidade aparente dos intérpretes começa a impor-se à marcação da história/ do teatro, à linearidade da flecha do tempo e da acção dramática de representação. Este é o momento central do espectáculo, mas a sua longa duração acaba por ameaçar a sustentabilidade da cena, ainda que apoiada num registo de entretenimento rápido, muito dinâmico, visual e sonoro. Ou seja, a duração desta cena funciona em função da última parte, retomada por Jerry Killick, mas durante a sua duração acaba por tornar-se cansativa e desconexa.
No entanto, há uma dupla leitura que pode ser feita da extensão desta cena central. Por um lado, pode tratar-se de voltar a assumir um princípio marcado e seguro que desenvolve para uma cena falhada, no que isso implica de distanciamento e ironia sobre o esforço de entretenimento do teatro. Por outro lado, como vimos, a noção de história que aqui se joga é a partir de uma leitura contemporânea, marcada pela indistinção de conteúdos históricos. Um exemplo disso, para além da heterogeneidade dos elementos cénicos, é a estrutura da narração histórica. Tal como estamos habituados a pensar na história, a narração dos primeiros factos é espaçada por grandes períodos de tempo e, à medida que nos aproximamos do sec. XX, esse espaçamento vai reduzindo. Começa-se a pensar por décadas, anos, acontecimentos. Essa proximidade histórica implica um abrandamento da narração histórica. O mais distante conta-se num instante, o mais próximo demora mais tempo a contar. E é esta gestão da duração que acaba por justificar a extensão da história do mundo contada por imagens que se sobrepõem e misturam.
Da mesma forma que antes, o palco vai sendo esvaziado à medida que Jerry dá continuidade à história do mundo mas, agora, segundo dois novos critérios: a duração e o sujeito. Jerry pega nos acontecimentos mais recentes do início do sec. XXI e dirige-se directamente ao público para um exercício de memória que começa no dia anterior, depois na hora anterior ao espectáculo, nos minutos anteriores ao espectáculo, nos minutos anteriores àquele mesmo momento. Mas este exercício de consciência histórica continua para além do tempo presente e estende-se ao futuro, dali a uma hora, já fora do teatro, dali a uma dia, já esquecidos daquele espectáculo, dali a uma década, quando alguns de nós já estiverem mortos, dali a um século, quando os nossos filhos estiverem mortos, dali a milhares de anos, quando nem esta cidade existir. É neste ponto, também, que influi o segundo critério, o sujeito, a sua experiência e consciência do tempo histórico, hic et nunc. Se alguma moral for dada a aprender, é da absoluta finitude humana e da sua estranha relação com a história, que trazemos connosco e que diariamente construímos. Se algum conselho houver a aprender é o de que podemos ser interventivos na história (sentido político) e o de que, no limite, não há outra história senão a que passa por nós (sentido existencial da experiência e consciência de história e, ao mesmo tempo, sentido ficcional da narrativa histórica).
Por outro lado, através desta reflexão sobre o tempo, é sugerida uma consciência do tempo do espectáculo, o tempo do teatro que é coincidente com o tempo da vida, numa distante evocação dos princípios – opostos – do Classicismo francês que reclamava a coincidência dos tempos para uma perfeita ilusão da estória e não, como aqui, da encenação da história.
Contexto:
Ler diário do processo criativo de The World in Pictures
Ler Diálogo Conjunto Forced Entertainment + Teatro Praga
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