domingo, maio 21, 2006

Do alcance das palavras ao precedente judicial



Terminou na quinta-feira a primeira (longa) fase de um processo que opõe o crítico Augusto M. Seabra ao presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio. Tudo por causa de um artigo de opinião publicado no jornal Público em Junho de 2003, no qual Seabra dizia que Rui Rio tinha, em relação à Casa da Música um comportamento típico de um energúmeno. É importante recordar que naquela altura se viviam tempos conturbados na Administração da agora Fundação da Casa da Música. A posição minoritária da CMP não a impedia de procurar forçar uma decisão que afastasse o pianista Pedro Burmester da condução do projecto. Rui Rio acabou por conseguir o que queria e o pianista foi a figura ruidosa e ausente da inauguração (como confirmou o discurso do então Presidente da República Jorge Sampaio “algumas pessoas importantes ficaram pelo caminho e é pena”). O tempo veio dar razão quer a Seabra quer aos outros que criticaram as posições de Rio. Burmester regressou à Casa da Música (mesmo que sob polémica e com a sempre, para mim, duvidosa aura de salvador) e o modelo de Fundação foi aprovado.

A posição de Seabra foi considerada por Rio como uma “ofensa à honra”, tendo sido solicitada uma indemnização de 10 mil euros por danos não patrimoniais. A decisão judicial, segundo o Jornal de Notícias de ontem, definiu “uma multa de 2160 euros e implicará, ainda, o pagamento de uma indemnização de quatro mil euros ao autarca”. Naturalmente que daqui seguirá recurso, segundo Seabra, e se preciso for até ao Tribunal dos Direitos Humanos.

O juiz considerou que o uso da expressão energúmeno tinha atingido limites inaceitáveis, mesmo ao abrigo da liberdade de expressão. Seabra defendeu-se declarando que o termo remonta ao teatro grego e é sinónimo de "pessoa que, por obsessão, provoca desatinos em processos". Outros sinónimos possíveis poderiam ser: desnorteado, fanático, exaltado ou furioso (Dicionário de Sinónimos, Porto Editora, 1977). Nenhum deles corresponde à ligação que o juiz de instrução Carlos Coutinho fez: “O sentido da palavra energúmeno é de pessoa desprezível, ignorante, selvagem. Estou habituado a ver um energúmeno como aquele que está num estádio e atira cadeiras ou aquele que trata crianças de forma selvagem”.

Que se discuta o alcance das palavras é um acto um tanto retórico, já que, como dizia Barthes, entraríamos no domínio da “linguagem dos sentidos múltiplos” (Crítica e Verdade, Edições 70, 1966). Depende da capacidade de interpretação de cada um, do contexto onde se insere, das intenções com que se diz. Nada justifica uma acção judicial, a não ser a ignorância.

Que Rui Rio não quisesse uma opinião contrária à sua não é de espantar. O autismo da CMP em relação à cultura (e não só) tem levado a um isolamento da cidade, para não dizer o reforçar do provincianismo, da fachada e da demagogia. Basta olhar para os jornais no período de transição da Administração da Casa da Música, para perceber que o jogo de bastidores que a CMP fazia era digno não só de teatro grego, mas de uma verdadeira farsa medieval. Todos os dias surgiam notícias contraditórias, boatos, calúnias, pressões e acusações torpes. Mais do que uma atitude energúmena, era um comportamento delirante. Já agora, no sentido grego do termo: de lirare, desviar-se da lira, o instrumento utilizado para cavar a terra, passando assim para algo fora da ordem.

O problema aqui não é tanto a decisão de avançar para um pedido de indemnização. O próprio Seabra diz que já travou muitos. A questão coloca-se no precedente que pode implicar a condenação, que poderia ir até dois anos de prisão. É, como dizia o cronista, a limitação de uma palavra no espaço público. É, evidentemente, o indício de uma vontade censória. O controlo da opinião pública contrária e actuante.

Recordo o que o próprio Augusto M. Seabra escrevia no Público a 30 de Março: “O direito à crítica é consubstancial à liberdade e ao espaço público. O direito à crítica dos actos, políticas e, mais estritamente, de obras e realizações estéticas. E, inerentemente, o direito à crítica dos actos e políticas que sustentem, ou pela inversa contrariem, a apresentação de obras e realizações sujeitas a serem publicamente desfrutadas e, como tal, passíveis de ser objecto do direito à crítica. Esquece-se com demasiada frequência que noções como as de ‘esfera pública’ e de ‘interesse público’ têm a sua origem histórica no conceito de ‘público’, quando os teatros e as plateias pagantes se consolidaram no século XVII, e que a imprensa livre decorre das publicações de ‘goût’, de ‘manners and morals’, de crítica, que floresceram no século seguinte - e de que hoje ainda sobrevive, conservador, o adequadamente designado ‘Spectator’.”

Com esta decisão favorável a Rui Rio assiste-se, por um lado, à instrumentalização do direito de “defesa da honra”. Rui Rio devia saber que não se defende a honra nem se recupera o crédito (difamação também significa descrédito) através de acções judiciais, mas antes através do exercício prático de acções que contrariem o juízo público. Ou seja, não pode afirmar que não faz, não diz, não quer quando tudo o que chega à opinião pública é exactamente o oposto. Por outro lado, a decisão judicial pressupõe ainda a circunscrição do exercício crítico, definindo-se (e defendendo) que a crítica só pode existir para os objectos consumados e não para as políticas e acções que os sustentam, garantem e justificam.

Estamos perante um caso grave de liberdades, direitos e garantias uma vez que aquilo a que Seabra apontava o dedo não era à pessoa Rui Rio mas ao autarca e às decisões que, em nome da autarquia (e dos seus interesses, imagino) considerava serem as mais correctas. É isso que aqui importa. Que em nome de uma autarquia (e justificado por um programa político que reduz a cultura a demonstrações folclóricas, exercícios fúteis e zero de diálogo com os parceiros culturais da cidade) se possam defender posições pessoais. Não me parece por isso que a inversão (político-pessoa) esteja em Augusto M. Seabra mas nas próprias posições de Rui Rio que, agitando bandeiras se arvorou em defensor de um qualquer valor maior que tem pouco a ver com as responsabilidades da segunda maior cidade do país. Já para não falar da dualidade de critérios. O que dizem de Rui Rio e o que ele diz de qualquer outro que o contrarie.

Numa altura em que se sucedem os casos mais ou menos velados de manipulação censória, numa conjuntura que facilita a demagogia e perante situações de nítido abuso de poder, até onde pode ir a liberdade de um crítico? A decisão contra Augusto M. Seabra deveria fazer pensar não só os críticos que assinam como tal, mas também o modo como a relação com a crítica e a opinião pública varia consoante o maior ou menor desprezo pelo acto de criticar, geralmente considerada uma posição comodista. Só quando o discurso coloca em causa, de forma directa e não metafórica, as acções é que quem faz desperta para um julgamento atento e consciente. Chama-se a isto serviço público. E não só não é menos válido que as acções como obriga à discussão. Se Rui Rio convivesse bem com isso seria inútil citar Barthes: “escrever é já organizar o mundo, é já pensar. É pois inútil pedir ao outro que se reescreva, se não está disposto a pensar”.

Última nota para referir a estranheza de não ver no Público qualquer defesa, por parte da direcção do jornal, das posições do cronista, já para não falar da defesa do próprio nome. Se não é prática do jornal fazê-lo, parece-me que o caso levanta demasiadas questões acerca das liberdades de imprensa e das relações opinião pública-poder que não podem ser escamoteadas e tratadas como meras notícias.

3 comentários:

Paulo Guerreiro disse...

Somos um "Estado Ultra Novo", sem lápis azul, mas cheio de borrachas gordas.

Anónimo disse...

uau!

Anónimo disse...

O Seabra foi condenado a indemnizar o Rui Rio????

LLLLLLLLOOOOOOOOOOOLLLLLLL!!!!

É bem feito! É bem feito!