quinta-feira, março 30, 2006

Censura I

A judicialização da crítica
Augusto M. Seabra
[hoje no jornal PUBLICO]


O direito à crítica é consubstancial à liberdade e ao espaço público. O direito à crítica dos actos, políticas e, mais estritamente, de obras e realizações estéticas. E, inerentemente, o direito à crítica dos actos e políticas que sustentem, ou pela inversa contrariem, a apresentação de obras e realizações sujeitas a serem publicamente desfrutadas e, como tal, passíveis de ser objecto do direito à crítica.Esquece-se com demasiada frequência que noções como as de "esfera pública" e de "interesse público" têm a sua origem histórica no conceito de "público", quando os teatros e as plateias pagantes se consolidaram no século XVII, e que a imprensa livre decorre das publicações de "goût", de "manners and morals", de crítica, que floresceram no século seguinte - e de que hoje ainda sobrevive, conservador, o adequadamente designado "Spectator".

Assim se constituiu o "espaço público" - e não é acaso que este texto se insira numa secção assim designada.O paradoxo da situação presente é o de o regime geral de mediatização das sociedades, e de mercantilização da informação, fazer com que espaços propriamente de mediação crítica, com o que isso supõe de reflexão consistente e prosseguida, tendam a dissipar-se na própria imprensa escrita que teve a sua origem histórica em órgãos de "crítica", substituídos por uma mera intermediação, com apresentação dos novos "produtos" colocados no mercado à disposição do leitor-"consumidor".

Essa é uma reflexão que me importa, mas em relação à qual se interpõe imediatamente uma outra, suscitada por factos prementes de ordem diferente mas conexa, e literalmente risíveis se não fossem também graves. Na segunda-feira o executivo liderado por Rui Rio anunciou uma acção judicial contra o JN e uma participação-crime contra o seu director pela publicação nesse Dia Mundial do Teatro de um divertido anúncio falso declarando a venda ou cedência para exploração de um teatro, reconhecivelmente o municipal Rivoli, na prática pouco menos que abandonado pela Câmara Municipal do Porto.

No dia seguinte era a notícia da providência cautelar de Margarida Rebelo Pinto e da sua editora para evitar a publicação do livro de João Pedro George Couves & Alforrecas - perante a coincidência é caso para nos perguntarmos se estamos a assistir a uma tendência de judicialização do direito à crítica.A escrita de Rebelo Pinto não me interessa - mas quando digo isto tenho a exacta noção de estar a dizer algo que não só é demasiado simples como mesmo, para usar jargão sociológico, um sinal de "distinção". De facto, o que sistematicamente me incomodou em textos críticos sobre a senhora é que eram também eles demasiado simples - para não acrescentar já que se torna irritante constatar que outros exemplos de escrita pirosa têm um acolhimento crítico bem mais canónico.

Mas se isto digo é para sublinhar que a análise de George, tal como esteve disponível no seu blogue Esplanar e se anuncia agora em livro, se diferencia da superficialidade das abordagens pelo seu carácter exaustivo, e pôs em evidência um "processo de produção", autoplágios incluídos. Se, em qualquer caso, Rebelo Pinto é um inegável "facto sociológico", a elucidação do seu "processo de produção" é de interesse público, e cabe ao autor do trabalho e a quem com ele acordar entender os meios de publicamente o disponibilizar a quem estiver interessado.Os motivos invocados pela Oficina do Livro, a editora de Rebelo Pinto, de uma presumível "utilização indevida, e com objectivos meramente comerciais, do nome da escritora", alegando violação dos direitos de personalidade, de autor e de propriedade intelectual, seriam simplesmente absurdos se não fossem extremamente graves - uma tentativa de impedir judicialmente um exercício analítico, um direito crítico e a liberdade de expressão. E seria gravíssimo na hipótese impensável de um tribunal lhe dar provimento.

Consideremos agora o falso anúncio no Jornal de Notícias de segunda-feira. Está dito antes do mais que era falso, e no dia seguinte a direcção comercial do matutino apresentou as suas desculpas. Mas sendo factualmente ilegítimo, o anúncio não deixava de ter um outro tipo de legitimidade, ou de pertinência. Qual uma caricatura, a sua publicação foi um gesto da ordem da sátira, decorrente aliás de uma afirmação do vereador da Cultura, Fernando Almeida, que na reunião camarária do dia 21, em resposta a uma invectiva do vereador socialista Miguel von Hafe - "mais valia privatizar o Rivoli" -, comentou que "não se importaria de encontrar uma entidade privada para gerir" o teatro municipal do Porto.

Rui Rio tem da sua legitimidade democrática, reconfirmada nas urnas, a curiosa concepção que ela se opera na proclamada "ruptura com a comunicação social", e consequentemente com a sua blindagem ao livre exercício da opinião crítica. E apesar de, extraordinariamente, quanto da campanha eleitoral ter apresentado no activo do seu mandato "a conclusão das obras da Casa da Música", projecto que tanto obstaculizou, ou de agora reconhecer que assume "alguma responsabilidade durante o mandato anterior" por não ter intervido na cultura "como deveria", apesar disso persiste em não superar a sua desconfiança de princípio em relação aos agentes culturais e a condenar ao estado vegetativo um equipamento como o Rivoli, dissipando a continuidade de trabalho da equipa de Isabel Alves Costa.

Qualquer leitor minimamente informado perceberia assim de imediato o alcance de uma sátira em moldes de anúncio, referindo um teatro, com "excelente localização no centro do Porto", com "amplas áreas para congressos, conferências, casamentos, baptizados e eventos promocionais", com o contacto telefónico da Câmara Municipal do Porto - e publicado no Dia Mundial do Teatro.Como escreveu Manuel Carvalho em editorial no "Local/Porto" de terça: "Um anúncio publicitário humorado dar origem a um processo contra um jornal, onde é que já se viu? Não haverá na câmara quem tenha a noção do que é o exercício do humor numa sociedade livre?" Mas Rui Rio persiste em confundir o direito de crítica e de sátira e questões políticas com questões de tribunal. É fraca ideia de democracia e noção nenhuma de liberalismo. Crítico

NOTA: Devo elucidar os leitores que decorre ainda o julgamento do processo que Rui Rio contra mim moveu.

7 comentários:

Anónimo disse...

Um bom blog ! Parabéns!
Sugiro mais atenção ao teatro descentralizado, ACERT, TEATRO MONTEMURO, LUÍS VICENTE e o seu LETHES... Fica a dica, de 20 a 25/26 vai acontecer um encontro de companhias da região centro na Figueira da Foz. Uma iniciativa feliz da Delegação Regional do Centro, onde estarão em discussão politicas culturais, etc...
O Festival Altitudes do TRSM já tem data marcada de 12 a 20 de Agosto.

Anónimo disse...

Acho incrível o despudor com que se copia um texto inteiro de um jornal pago, ao arrepio das leis que regulam a propriedade intelectual, e se pespega com ele num blog. Incrível.

Anónimo disse...

Para os três comentários acima... NO COMMENTS.

Anónimo disse...

sim amet... a descentralização, a democracia verdadeira, o acesso à cultura além do bairro, sempre fizeram confusão aos medíocres. Este blog é o Portugal Velho que há-de desaparecer pela luta, pela revolução, burgueses de merda disfarçados de progressistas... olha barda... para vocês! Viva a Luta peloa Cidadania plena e liberta dos fascismos do gosto do sistema!

Anónimo disse...

epá, isto está a aquecer...

Anónimo disse...

Não me estava a referir a isso, mas enfim... Lançe lá a fúria.

Anónimo disse...

errata: Lance