quinta-feira, abril 27, 2006

No aniversário de Beckett II

Samuel Beckett, cujo centenário de nascimento se comemorou no passado dia 13 de Abril, não foi um dramaturgo cujo território fosse reivindicado somente pelo teatro, ou por nomes do teatro. Em 2000 o coreógrafo João Fiadeiro arriscava a primeira encenação com À espera de Godot, obra-maior do prémio Nobel. O texto que aqui se publica foi escrito na altura da estreia, mas nunca foi publicado, tendo sido revisto para esta publicação.



Esperar pelo nada

Como é que se cria um espaço que já existe? Ocupando-o provisoriamente. Usando-o. Habitando-o enquanto inquilino e não enquanto proprietário. Para o bem e para o mal. A bem ou a mal. Resta-me ser-lhe infiel.

Em “À espera de Godot” as palavras e as frases perdem-se até que o texto se transforme em possibilidade, em sugestão, em tensão. É essa tensão que permite que o problema lançado, o desafio colocado ou a provocação feita, nunca cheguem a ser resolvidos, respondidos ou consumados. A espera de nada é feita dessa tensão, que por sua vez é feita de frases, olhares ou acções que existam não porque queiram dizer, olhar ou fazer mas porque nos ajudam a dar sentido ao medo que sentimos quando não sentimos o sentido das coisas. O texto é por isso um pretexto para prolongar a imagem proporcionada por uma frase até que o seu significado se confunda e se perca na viagem entre o dito e o ouvido.

Espera-se por nada. Nada esse que existe numa proporção igual a tudo o resto. Nada esse que é, no final das contas, o que de facto existe. O resto - o tudo - são as palavras, as coisas e as pessoas para as quais (e de quais) elas falam. E essas são o que são. Estão lá e existem apesar de nós. Servem para nos lembrar que entre elas (e entre elas e as coisas) existe o tal vazio que imaginamos e sonhamos, que prevemos e antecipamos, que desconhecemos e receamos. Saber viver o “nada” como se de tudo tratasse é das poucas coisas que fará algum sentido fazer se quisermos ter a esperança de compreender tudo o resto.

Coreógrafo. Encenou À Espera de Godot, para os Artistas Unidos, em 2000.


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