quarta-feira, abril 26, 2006

No aniversário de Beckett


No dia 13 de Abril passaram 100 anos sobre o nascimento de Samuel Beckett, dramaturgo e nome maior do teatro mundial. Para assinalar a data O Melhor Anjo convidou alguns nomes que trabalharam na obra do prémio Nobel para darem conta do seu Beckett. Publicam-se hoje os dois primeiros testemunhos.



Uma estranheza estimulante
por Gonçalo M. Tavares

A escrita de Samuel Beckett agrada-me pela contenção, pela forma como ameaça continuar a falar, mas subitamente se cala. São assim as suas personagens. Quase sempre avançam parecendo à primeira não mais parar, mas param, e depois aceleram outra vez. É uma questão de ritmo, quase musical. É uma escrita que vive de uma certa contenção e dá força à arte de desapontar do leitor, de o frustrar: o leitor não recebe o final das frases que esperaria, e isso provoca a princípio estranheza. Uma estranheza que se torna a seguir estimulante; “falhar melhor” é um lema que quase dá para todas as vidas. Samuel Beckett faz anos e isso é óptimo.

Escritor e dramaturgo. Autor de A Colher de Samuel Beckett


Beckett: testemunho sobre dezassete páginas a espaço e meio
por Francisco Frazão


A Beckett voltarei sempre. Para o reler, claro, mas também para descobrir o muito que me falta: os poemas, vários romances, alguns dos textos curtos, a maior parte dos ensaios. Com tanta leitura em atraso (para já não falar da bibliografia crítica, de que se diz ser uma das mais extensas dos estudos literários e teatrais) e confessada ignorância, tive a sorte de traduzir uma das suas novelas, chamada Primeiro Amor. E mais sorte ainda porque havia um objectivo, o espectáculo que o Miguel Borges haveria de estrear em Fevereiro de 2001 n’a Capital (foi há mais tempo do que eu pensava, e só um pouco menos desde que o mayor com gel mandou fechar, com falsas promessas a que já ninguém parece ligar, o edifício onde as personagens de Beckett se fizeram ouvir em quase todos os seus quatro ou cinco andares).

Era o primeiro texto que traduzia para teatro (não houve muitos mais) e foi certamente o mais marcante: primeiro porque não era um texto pensado para ser representado (embora o próprio Beckett tivesse autorizado em vida que fosse utilizado dessa forma), depois porque a própria ideia de tradução constituía um problema: escrito em francês em 1946, Premier Amour só seria publicado em 1970, três anos antes da edição da versão inglesa. O bilinguismo da obra de Beckett põe quase sempre em confronto duas hierarquias literárias: a que privilegia o original sobre a tradução; a que confere mais autoridade à última versão publicada pelo autor. Incapaz de escolher entre o francês e o inglês, lá fui saltando como pude entre um texto e outro para construir um terceiro, tentando aprender com a exigência daquela escrita, tanto a primeira como a segunda, seguindo normalmente a sintaxe francesa (mais próxima da nossa) e aproveitando quase sempre os cortes e acrescentos do inglês, com a rasura do que só em francês fazia sentido e o suplemento de estilo, desespero e humor que me parece existir no segundo texto (o exemplo que cito sempre: ao francês de “quelques semaines plus tard, plus mort que vif, je retournais encore au banc”, corresponde o inglês “some weeks later, even more dead than alive than usual, I returned to the bench”; em inglês volta-se ao banco de jardim ainda mais morto do que vivo do que em francês).

O maior desafio, para além de dificuldades com algumas equivalências lexicais, foi o do ritmo, aquela “sintaxe da fraqueza” (como disse um crítico) que acrescenta sempre mais uma reverberação de incerteza à frase que parecia terminada: “Era qualquer coisa com limoeiros, ou laranjeiras, já não me lembro, é tudo o que consigo recordar, o que para mim é um sucesso, ter retido que era qualquer coisa com limoeiros, ou laranjeiras, já não me lembro, porque de todas as outras canções que ouvi na vida, e ouvi bastantes, já que é aparentemente impossível, fisicamente impossível a menos que se seja surdo, atravessar este mundo, mesmo à minha maneira, sem ouvir cantar, não retive nada, nem uma palavra, nem uma nota, ou tão poucas palavras, tão poucas notas, que, que nada, esta frase já está comprida demais.”

Com o texto mais ou menos pronto, faltava o espectáculo. Acho que no primeiro encontro o Miguel adormeceu e não veio, ou só mais tarde. A primeira leitura foi no terraço d’a Capital, vista sobre o rio e o Bairro Alto, estava lá também o Paulo Claro (que acompanhou os ensaios, como mais tarde o Pedro Marques e pontualmente o Jorge Silva Melo). Eu fui aparecendo de vez em quando, corrigi frases, ajudei no que pude, vi como o Miguel se foi apropriando do texto até que a sua voz substituiu por completo e com enorme proveito a outra, imaginada, que me acompanhou durante a tradução.

O espectáculo fazia-se com quase nada: uma mesa, uma cadeira, uma porta, janelas verdadeiras e janelas falsas, uma parede azul e um chão coberto da terra que há nos cemitérios (não sabemos se o protagonista está vivo ou morto); e um chapéu, que também servia de caçarola. Vi o espectáculo muitas vezes, sempre nervoso por saber tantos pedaços de cor. Percebi como o teatro é coisa de vivos para vivos, e de como é responsabilidade do actor mantê-lo assim: uma noite a maçaneta da porta soltou-se inesperadamente quando puxava por ela e o Miguel largou-a no único momento em que isso podia construir um sentido adicional para o espectáculo; noutra noite abriu as janelas que davam para o exterior e trouxe para dentro chuva verdadeira. O espectáculo foi reposto, estava em cena quando morreu o Paulo Claro (noite terrível sob a sombra de Beckett: Primeiro Amor no primeiro andar, Dias Felizes no rés-do-chão – os actores não quiseram cancelar).

A tradução acabou por ser publicada na Âmbar, na altura dirigida pelo João Rodrigues. Na capa, por coincidência, um azul quase igual ao do espectáculo, que vinha da parede do fundo do palco do Teatro Variedades, onde os Artistas Unidos fizeram o Fatzer, mas para mim vai ser sempre o azul “Primeiro Amor”. O pior foi o livro ter sido vítima de um revisor demasiado solícito, que corrigiu Beckett (ou aquilo que tentei fazer passar por tal) como se fosse um artigo de jornal, dividindo frases, inventando pontos de exclamação, travessões e pontos-e-vírgulas (sinal de pontuação que Beckett nunca usa no texto). Foi muito deprimente. Na sua versão correcta (não revista, mas desrevista), o Primeiro Amor está agora disponível numa segunda edição, com uma capa mais feia mas bem acompanhado pelo Companhia traduzido pelo Miguel Castro Caldas.

Consultor para o teatro na Culturgest. Tradutor de Primeiro Amor.

Hiper-ligações e título do texto de Gonçalo M. Tavares da responsabilidade do blog. Testemunho de Gonçalo M. Tavares recolhido por Pedro Manuel.

3 comentários:

Anónimo disse...

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Castiço! Preocupam-se com o Beckett e não se preocupam em acabar com a Língua Portuguesa (a responsável pelo nosso atraso e coitadismo. Em especial das Mulheres)!!!
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“Os ESPANHÓIS evoluem. Os PORTUGUESES regridem!!”
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Coitados dos Portugueses e Coitados dos Brasileiros! Coitados dos Angolanos e dos Moçambicanos!
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Coitados também dos Monarcas!
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E tudo por CAUSA da Língua Portuguesa e do CLERO da Igreja Católica.
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MONARQUIA: "Rei-Nú", Eu i-rei, eu se-rei, eu ganha-rei, eu- cantarei (mas nunca realizo esse futuro), "Dó-Na" Maria II, etc, etc, etc.
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MULHERES: “Dó-Na” Dores, “Dó-Na” Sara, “Dó-Na” Ofélia, “Dó-Na” Maria, ……. O meu “Namora-Dó”. O meu “Amá-Dó”. Tanta tanta PENA delas.
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POLÍTICOS: "Demo-Cracia" (poder do Demónio), "Dê-Puta-Dó", "Parti-Dó" (de "Quebra-Dó", de inútil), "Poli-Tico" (Tico & Teco. Dois Esquilos). “Sida-Dão”,
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DOENTES: "Pensa-Dôr" (Gabriel o Pensa-Dôr que tinha dôr de cotovelo das Loiras), Desperta-Dôr, Trabalha-Dôr, Computa-Dôr, Desenha-Dôr, ....... milhares.
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ANIVERSÁRIO: Quantos ANÚS tens?!
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OUTROS EXEMPLOS EM: "As PALAVRAS ÚTEIS Portuguesas estão, PRACTICA-MENTE, todas XUNGADAS!", http://eunaodesisto.blogs.sapo.pt/2505.html
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ÚLTIMA HORA: Os Europeus não caíram na “Ladainha do Coitadinho”. Estão a ajudar Portugal a ACABAR COM A LÍNGUA Portuguesa.
Ver: “Parlamento Europeu aprova INDICADOR DE COMPETÊNCIAS LINGUÍSTICAS que exclui língua portuguesa”, in http://www.publico.clix.pt/shownews.asp?id=1255406
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e Ver: “Língua Portuguesa excluída”, http://jn.sapo.pt/2006/04/28/primeiro_plano/lingua_portuguesa_excluida.html
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PS: Os ESPANHÓIS evoluem. Os PORTUGUESES regridem!!
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DOM Juan Carlos. DOM Quixote de La Mancha. Etc, etc, etc.
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“Dó-Na” Dores, “Dó-Na” Sara, “Dó-Na” Ofélia. Etc, etc, etc. AXIOMA: “Um País vale o que valem as suas Mulheres”.
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mauricio_102@sapo.pt

Anónimo disse...

what th...
alguém apontou esta matrícula?

Anónimo disse...

Keep up the good work »