encenação de John Romão/murmuriu
Incrível Almadense, 4 de Fevereiro, 22h
O título do espectáculo, Why can I be me, parece substituir a pergunta quem sou eu? pela expressão porque não posso ser eu, sugerindo dois pontos de vista sobre o espectáculo: por um lado, a questão identitária; por outro, o tema da restrição da liberdade individual.
A questão identitária atravessa várias cenas: a presença de um travesti como figura de identidade ambígua foi convocada pela sua simples presença, onde o mais interessante foi a progressiva humanização da imagem ambígua, que se foi tornando pessoa e nome; o discurso de uma actriz que alterna entre o entusiasmo da uma casa nova, plena de futuro, e a condição permanente de insatisfação com o seu trabalho; a relação íntima com o espaço mental da cidade de Almada, explorado através da periferia dos lugares do sexo, as zonas obscuras e secretas; ou na cena em que vários rostos mediáticos, sobretudo políticos, são projectados na face de uma cabeça vazia.
A restrição da liberdade individual é veiculada, sobretudo, através da crítica ao sistema mercantilista que promove o excesso. O excesso é protagonizado na cena em que se come fast-food com um apetite convulsivo, ou talvez já não seja apetite; quando o travesti é amarrado a uma cadeira para servir de obra de arte, justificado por um discurso inócuo, ou talvez já não seja arte; e quando as compras no Ikea se tornam em material explosivo, ou talvez não tão explosivo. Os excessos a que somos levados cegam-nos e impedem-nos de ser autênticos.
De uma forma geral, a construção e organização das cenas parece obedecer a uma sincera vontade de expressão. No entanto, esse ânimo tanto tende a constituir boas soluções, como a perder-se em cenas pouco sustentadas, sobretudo na abordagem política. Deste modo, o espectáculo why can I be me resulta de uma furiosa dinâmica de comunicação e entretenimento, que nos agarra, mas com deslizes pontuais que podem comprometer essa vontade de rebeldia e afirmação.
A linguagem performativa, assente num princípio de abordagens temáticas, improvisação, causalidade e casualidade, consegue bons resultados em cenas como a do vídeo do Ikea (filiado no imaginário do encenador argentino Rodrigo Garcia, com quem John Romão contactou no Projecto Thierry Salmon e de onde recupera as estratégias de concepção), na utilização dos materiais orgânicos (leite, maionese, ketchup, pão) ou quando os intérpretes reagem contra o objecto de culto, e cultura, que são os livros, utilizando-os como órgãos sexuais num menage a trois.
Em comparação, a abordagem política não articula os elementos que dispõe, contentando-se em negá-los e corrompê-los, como no caso dos rebentamentos de ícones culturais, entre os quais o Louvre, o Lux e o Teatro Nacional D. Maria II; ou da exposição imediata de imagens da guerra do Iraque, como se a simples exposição valesse como contestação. A ideia de que existe uma entidade, um sistema que nos obriga a este ou aquele comportamento é devedora de uma certa visão romântica que vitimiza o cidadão, esquece que a contradição também é uma tendência natural, e que a restrição da liberdade individual pode ser uma escolha. Ou não será isso também, mesmo que contraditório, um gesto de liberdade?
Pedro Manuel
Ler análise à 1ª versão de Why can i be me (Fevereiro 2005)
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