domingo, fevereiro 26, 2006

Autismo

Crítica a Sobreviver
São Luiz - Teatro Municipal, Lisboa
até 05 Março 2006

Marta Furtado e Miguel Borges (foto Abílio Leitão)

A clássica pergunta comparativa entre filme e livro deveria ser aplicada em Sobreviver, o espectáculo que Lúcia Sigalho criou a partir dos livros pretos (Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém) de Gonçalo M. Tavares. Mas a encenadora alerta: “o Teatro não é literatura, o Teatro que a Sensurround faz não se legitima no texto, não temos dúvidas de que o Teatro é uma disciplina autónoma. E, parafraseando Gonçalo M. Tavares: Isto era tão óbvio que formulá-lo parecia estupidez”.

O pressuposto dramatúrgico não foi portanto apresentar uma adaptação dos textos do escritor, autor de obra vasta e intensa que no reduzido espaço de uns anos se tornou um nome incontornável da literatura nacional. Esse contributo constrói um imaginário uniforme e plural que parte/regressa dos/aos textos de Gonçalo M. Tavares. Procedeu-se a uma apropriação dos textos, tornando-os matéria para o universo criativo de Lúcia Sigalho, que se sustentou sempre em imagens escritas para se tornar autónomo, bastando pensar em dois exemplos: A Birra da Viva, a partir de Adília Lopes (2000) a Viagem à Grécia, baseado na Antígona, de Sófocles(2001).

Podemos até considerar que, perante o espectáculo finalizado, o texto se torna menos relevante para dar lugar às expressões, ao movimento, ao conflito, ao exercício radical de exposição do actor. Mas que existe uma preponderância da palavra e da literatura é por demais evidente. Trata-se de um universo referencial, assente em códigos performáticos que vivem da contaminação dos géneros. A mais valia de Lúcia Sigalho sempre foi o modo como se apresentava em ruptura com o excesso, a violência das classificações, a necessidade de criar e o poder interventivo do criador, a partir de uma base onde o lado pessoal se sobrepunha a qualquer outra metaforização.

Pense-se em Dedicatórias (2000), espectáculo com o qual Sobreviver estabelece mais do que algumas evidências. Ali como agora trabalhava-se no plano do que a imagem dizia sobre a memória, a perda, os afectos, a entrega e a incapacidade de tudo controlar. As sequências de Dedicatórias inscreviam no espaço do Armazém do Ferro o lado físico dessas recordações, procurando combater a violência que a demolição do edifício, prevista para alguns meses depois, iria provocar. Agindo com raiva, ciente da sua impotência mas procurando, ainda assim, resistir, Lúcia Sigalho criava uma obra maior, justificava a sua urgência criativa e assumia a importância da criação numa sociedade sem espaço para a arte.

Sobreviver é, novamente, uma peça coral, onde a individualização dos intérpretes existe para dar conta de um estado de alma colectivo. Também porque nenhum deles (e são dez) se destaca particularmente, parecendo perdidos numa estrutura pouco explorada, perdem-se em recriações de cenas do quotidiano ou entregam-se a uma violência expositiva (correr, cair, gritar…). Há cenas que são aglomerados de ideias, outras nítidas leituras privadas dos livros, algumas exercícios retóricos sobre a arte da fuga ou propostas de contemplação do imaginário do autor. O facto de reconhecermos imagens e momentos de outros espectáculos da encenadora transmitem uma sensação de bloqueio criativo e artístico, tornando vazia de sentido uma dramaturgia retalhada, mais do que fragmentada.

Ao longo do espectáculo sucedem-se cenas que testam o limite de resistência do espectador, dando vontade de abandonar a sala. Talvez a intenção seja testar a capacidade de envolvimento do espectador com um universo desesperado, frio, agreste… Diz a encenadora no texto do programa: “a dramaturgia do projecto é construída, assim, com todos os colaboradores, numa dicotomia entre o universo dos livros pretos e o que cada um tem a dizer a esse propósito. Dramaturgia essa que pretendemos continuar ao longo do espectáculo com a participação dos espectadores. Quisemos manter no espectáculo a errância, o não-lugar, a precaridade em que existe o mundo destes livros pretos, nunca fixando a cena e obrigando-nos a uma grande imponderabilidade nos termos em que a peça é realizada”.

Mas essa não-fixação da cena e errância apresentam-se através de sequências pouco exploradas, em que prevalece a imagem em vez do conteúdo. Os actores atravessam o palco, gritam desesperados ao microfone, intercalam frases descontextualizadas, abraçam-se, beijam-se, voltam a cruzar o palco em cenas que não deixam espaço para uma lógica (e o teatro de Sigalho sempre foi sobre lógica e razão de ser das coisas) nem rasgam qualquer território novo.

O teatro físico que propõe parte de uma incapacidade da palavra conseguir mudar o mundo (os textos de Gonçalo M. Tavares são de um desespero alarmante, quase a justificar a necessidade da palavra, uma avaliação…), pelo que desenvolve imagens que possam caricaturá-lo. Nenhuma das personagens (a existirem personagens) é suficientemente prolongada. Limitamo-nos a assistir a um amassar das referências da encenadora, sem que disso surja algo realmente pertinente. Nem as enormes esculturas pretas de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira que se dispõem no meio da plateia ou coladas aos camarotes, ou as máquinas de projecção criadas pela artista plástica Joana Vasconcelos, acrescentam qualquer nova leitura ao espectáculo. Trata-se de um espectáculo falhado, que parece feito a contra-gosto, sem qualquer razão que justifique a ida.

O teatro pode não ser literatura, mas então teremos que perguntar o que é literatura e o que é teatro, e se fará sentido procurar essa separação (essa defesa?) num teatro como o de Lúcia Sigalho que vive de uma dose generosa de palavras, venham elas da literatura, da música, do cinema, da dança ou do quotidiano. Ou seja, de uma clara noção do poder da palavra e da força combinada entre imagem e “mensagem”. O que se apresenta em Sobreviver é fruto de um autismo criativo e parafraseando Gonçalo M. Tavares: “isto é tão óbvio que formulá-lo parecia estupidez”.

Outros espectáculos de Lúcia Sigalho criticados neste blog:

5 comentários:

Anónimo disse...

ia jurar que a antígona era a de sófocles...mas enfim.
corrige lá isso que ao que sei o eurípedes não escreveu nenhuma antigona. se a dita te apanha esta falta ui ui.

Tiago disse...

lolool, estava a pensar na Fernanda Lapa que entrou na Antígona feita pela Lúcia Sigalho, e que agora faz a Medeia, do Eurípides, no Nacional. lolololol

Anónimo disse...

lolol mas foi giro...
tb não era baseado na antigona..era um misto antígona e sophia de mello Breyner. 2 become 2.
lolol

Anónimo disse...

2 become 1. livra, não dou uma pá caixa

Anónimo disse...

Por acaso isso é falso. A primeira parte tinha textos de Sophia de Mello Breyner, da própria Lúcia Sigalho, de filosofos gregos, etc.. E a segunda parte era a "Antigona" de Sofocles. Portanto 1, becomes 2 (or more).