A última crónica de Augusto M. Seabra no jornal PÚBLICO, CCB ainda - um manifesto, de 08 Dezembro, versou, uma vez mais, sobre a crise no Centro Cultural de Belém, impressionando aliás pela consistência de discurso - há mais de ano e meio que a situação tem vindo a ser denunciada pelo crítico . Mas o texto, que se debruçava sobre a carta do compositor Nuno Corte Real depois do cancelamento do seu concerto, terminava com um pertinente desafio à comunidade artística, mas muito em particular a quem faz crítica de espectáculos. Escreveu Seabra que "perante a evidência que manifestações novas de criatividade artísticas são indesejadas no actual CCB, ou apenas toleradas numa espécie de engano legitimador, não menos se coloca à generalidade da “comunidade artística”, como a outros agentes culturais, críticos nomeadamente, a questão de saber se irão de modo avulso continuar a fazer, ou falar de, espectáculos no CCB, ignorando o quadro geral, o que no caso pode equivaler a dissimulá-lo".
A questão é por demais relevante e toca num ponto essencial da relação entre objecto-recepção: que papel para os críticos? O teórico francês Roland Barthes escreveu no ensaio Crítica e Verdade que "nada é mais essencial a uma sociedade do que a classificação das suas linguagens"(p. 45, 1966, Editions du Seuil). Mas estará a sociedade preparada para essa classificação? Como reage a comunidade, a um primeiro nível, e a envolvente, num segundo nível, perante discursos afirmativos, que questionem, que ponham em causa, que polemizem, que obriguem a reflexões?
A questão é por demais relevante e toca num ponto essencial da relação entre objecto-recepção: que papel para os críticos? O teórico francês Roland Barthes escreveu no ensaio Crítica e Verdade que "nada é mais essencial a uma sociedade do que a classificação das suas linguagens"(p. 45, 1966, Editions du Seuil). Mas estará a sociedade preparada para essa classificação? Como reage a comunidade, a um primeiro nível, e a envolvente, num segundo nível, perante discursos afirmativos, que questionem, que ponham em causa, que polemizem, que obriguem a reflexões?
Se pensarmos na quase nula reacção da comunidade artística que teve a carta do coreógrafo João Fiadeiro, denunciando a falsidade de um evento como a Plataforma de Dança Portuguesa, devemos pensar se essa reacção não se deve também a uma questão de formação nos criadores, mais que a uma questão de condições de produção. Uma falha na formação que muitas vezes se disfarça num conceito vago como urgência performática ou permite a proliferação de objectos híbridos, definição perversa e abrangente que soa mais a preguiça intelectual que vontade de desconstrução performática. Mas se quanto aos criadores até se pode fazer o esforço formal de compreensão de certas atitudes (mas até quando e em nome de quê?), que podem os críticos?
Curiosamente, ou talvez não, o próximo congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, que decorrerá em Março, em Turim, versará sobre o tema "o fim da crítica". Diz a AICT no programa do encontro: "In many countries, newspaper critics are finding their reviews confined to ever decreasing space, or driven out altogether by thinly disguised publicity handouts. Fewer and fewer periodicals exist where the popular critic can comment on the theatre scene, locally or internationally. Television and radio give scant time to cultural commentary of any kind. Serious journals of theatre criticism and evaluation are also in decline as outlets for the trained critic, while the growth of peer-reviewed academic journals sees much writing on theatre passing into the hands of scholars who may rarely see what they are writing about. The growth of the internet has meant a huge growth in websites and weblogs discussing theatre, but how do we judge their content, or the abilities of those producing them? (...) Has Post-modernism destroyed traditional criticism? Have today’s new theatre forms and fusions rendered it obsolete? Is there still a place for ideologically oriented criticism? Can video records of theatre events replace written reportage? If criticism as we know it is dying, is it worth the effort to resuscitate it? Are there new forms of criticism more appropriate to today’s theatre in a globalised, electronic world?"
O debate não é novo e menos ainda está circunscrito à crítica, mas é ou não a crítica uma forma de arte? Talvez de meta-arte? Quem critica os críticos? Podem ou não os discursos críticos funcionar como objectos autónomos que não devem procurar substituir-se aos espectáculos, mas antes serem conscientes da origem da reflexão? E como pensar a importância de um texto quando é esse texto o agente que posteriormente permitirá a reconstrução de uma memória? Que presente se está a construir, em nome de quê e para quê?
O debate não é novo e menos ainda está circunscrito à crítica, mas é ou não a crítica uma forma de arte? Talvez de meta-arte? Quem critica os críticos? Podem ou não os discursos críticos funcionar como objectos autónomos que não devem procurar substituir-se aos espectáculos, mas antes serem conscientes da origem da reflexão? E como pensar a importância de um texto quando é esse texto o agente que posteriormente permitirá a reconstrução de uma memória? Que presente se está a construir, em nome de quê e para quê?
É consensual que um crítico é um espectador privilegiado numa plateia, podendo distinguir o que é relevante num espectáculo, dando depois a ler o seu ponto de vista, e, dessa forma, contribuir para um tecido mais aberto, honesto e, obviamente, auto-crítico. O que já não é tão consensual é a posição do crítico, havendo quem defenda que serve de intermediário entre o autor e o espectador, e que pelo facto de ser privilegiado se deve obrigar a uma ética para com o leitor. Ou seja, deverá procurar colocar-se no papel de quem o lê, tentando perceber de que modo chega a mensagem.
Há, no entanto outros críticos que defendem que o privilégio não lhes retira a capacidade de serem espectadores e, por isso mesmo, que devem ser limitadas ao máximo as relações pessoais com os criadores, havendo até alguns que se recusam a receber press-releases, acreditando que só assim se sentirão completamente libertos de pressões. Há, no entanto, outros que por estabelecerem relações pessoais com os criadores acreditam estar em melhor posição para exercerem uma desconstrução do seu discurso.
Há, no entanto outros críticos que defendem que o privilégio não lhes retira a capacidade de serem espectadores e, por isso mesmo, que devem ser limitadas ao máximo as relações pessoais com os criadores, havendo até alguns que se recusam a receber press-releases, acreditando que só assim se sentirão completamente libertos de pressões. Há, no entanto, outros que por estabelecerem relações pessoais com os criadores acreditam estar em melhor posição para exercerem uma desconstrução do seu discurso.
Há quem não ache possível, ou ético, que alguns críticos tenham um programa e, através desse programa criem linhas que permitam definir os contextos criativos. Entre os que não acreditam na possibilidade de um programa não ser impeditivo de uma leitura atenta e abrangente do que se faz, contam-se aqueles que consideram a crítica um género jornalístico, ou acumulam jornalismo e crítica, situação que causa acesas discussões sobre objectividade, confronto conhecimento/recepção e proximidade.
Quer-me parecer que qualquer pessoa que leia uma crítica faz a opção de confrontar discursos, mas não acredito que possa determinar o acto de ver/não ver baseada somente nas críticas. Isto porque me parece que deve ter a consciência de que para o texto crítico existir foi necessário fazer determinadas opções. Tenho para mim que a crítica jamais se poderá substituir a um espectáculo, porque nunca permite dar conta de todos os níveis de leitura. Os textos críticos são posições pessoais dos seus autores que perseguem determinadas linhas e, no conjunto dos textos, apresentam hipóteses de classificação do tecido criativo. Diz Barthes: "escrever é já organizar o mundo, é já pensar" (p.33, idem). Acredito, por isso, que é mais válido ter um programa do que procurar ser o mais amplo possível, indo muitas vezes contra aquilo que são fundamentações pessoais. Porque não se trata aqui de políticas de gosto, mas de uma consciência do que é e não é relevante. Se quisermos, a crítica poderá até ser um muito curioso exercício de fundamentação de um discurso de recusa.
Mas o assumir de determinadas posições implica uma liberdade cujo preço nem todos estão dispostos a pagar. E, muito provavelmente, não se deveria pedir para pagarem. Sobretudo porque quem exerce crítica se deveria reger por uma ética que o impedisse de se envolver em situações que lhe toldem o julgamento. Mas há situações-limite que obrigam a tomadas de posição. Resta é saber se existe quem as tome. Não se fala aqui de quixotismos, mas da construção de um discurso consciente, atento e responsável. Um discurso implicado com a vontade de mudança. Um discurso sério. Um discurso próprio. O que se passa no CCB é uma dessas situações. E sobre isso, quase silêncio. Mas todos os dias, para quem lá trabalha, para a comunidade e para o futuro que se hipoteca, o mal não se extirpa. Em nome do tempo que vai passar, dizem.
O que Augusto M. Seabra "pede" é uma utopia. E é uma utopia porque a relação entre criadores e crítica está fragilizada, seja por razões exteriores (ausência de espaço nos jornais, pouca permanência dos espectáculos em cartaz, inexistência de meios alternativos de comunicação) ou de base (são poucos os criadores que têm um discurso pós-objecto, ou que sabem "lidar" com críticas, integrando-as no processo de construção de um percurso criativo, são poucos aqueles que querem fazer crítica, ou que a querem fazer pensando a relevância do que fazem). Mas é também uma utopia porque não há uma verdadeira comunidade, nem artística, nem crítica. Não há opinion makers na cultura, e muito menos questões fundamentais para quem trabalha nesta área todos os dias, o são para outras pessoas.
Falar da crise do CCB, da ausência de sub-directores no Instituto das Artes, questionar a legitimidade de Joe Berardo em exigir "as" condições para deixar que a sua colecção fique em Portugal, pressionar as estruturas responsáveis pelas zonas classificadas como Património Mundial, tentar perceber como resolver a ausência de apoios da parte do Estado, exigir uma discussão sobre o estatuto do artista, querer saber que programa vai a Gulbenkian ter para a dança depois do fim do Ballet Gulbenkian, proteger o património intelectual, estabelecer um verdadeiro eixo entre Cultura-Educação-Ciência, etc., etc., etc., são tudo questões que importam muito pouco quando o país tem outros problemas. Ou seja, a ausência de tomadas de posição claras prende-se, em grande medida, por uma falta de estratégia cultural. Sim é cultura, mas isso é o quê?
Por isso caro Augusto, é perfeitamente natural que sinta que vai continuar a falar sozinho. O surgimento de outras vozes implica uma independência e um comprometimento individual. Implica uma consciência e uma ética, um rigor e uma seriedade, uma distância e um sentido crítico. No fundo a vontade de fazer alguma coisa. E quem é que quer meter o dedo na ferida?
2 comentários:
"devemos pensar se essa reacção não se deve também a uma questão de formação nos criadores, mais que a uma questão de condições de produção." - mas então, não foste tu a ser acusado de não ter formação certa para crítica de dança, há uns tempos? O que é que será então, essa "formação" que pedes?
"etc., etc., etc., são tudo questões que importam muito pouco quando o país tem outros problemas." Visto por um polaco, parece-me uma questão de valores e hábitos, e não de "outros problemas". Não se pode falar de nenhuma "estratégia cultural" enquanto não há uma real armada de pessoas que fazem coisas, e uma armada muito maior de pessoas que acham essas coisas importantes. O grupinho que está por agora à fazer parece exactamente o mesmo que o que aprecia, e o abismo entre os "artistas" e os "não artistas" não contém quase ninguém, pois os espectadores de um teatro Villaret ou Politeama raramente se encontram "deste" lado. A questão é mais complexa, claro, mas esse parece-me um ponto frequente e confortavelmente omitido pelos belos espíritos de palco.
Vvoitek, a formação "que peço" tem a ver com ética e rigor. Refiro-me ao sucedido em Faro e à ausência de discurso consciente e concistente acerca da atribuição de apoios, não estou a falar de formação técnica, mas , se quiseres (ai o palavrão...) humanista. No fundo respeitarem o seu próprio trabalho.
Sim, fui acusado de não ter formação em dança e isso ser um handicap para escrever sobre o tema. Ora, batatas. Argumentos desses desmontam-se com honestidade no que se faz.
E quanto aos "problemas maiores", a expressão parece ter-se tornado corrente, basta ver os debates presidenciais. Há sempre problemas maiores que a cultura, é por isso que à falta de uma comunidade forte (e é aí que bate o ponto da responsabilidade dos críticos), jamais as coisas se alterarão. No dia em que a comunidade se der ao respeito, será respeitada.
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