domingo, novembro 20, 2005

Sem tempo, sem peso

Dançar Hans van Manen
Companhia Nacional de Bailado
Teatro Camões, Lisboa
12 Novembro 2005
21h30
Sala cheia


Sarcasm Foto: Alceu Bett

Depois da reposição de Pedro e Inês, de Olga Roriz, no passado mês de Outubro, a Companhia Nacional de Bailado (CNB) abriu a temporada 2005/2006 com a apresentação de um programa feito para homenagear o coreógrafo holandês Hans van Manen. O programa, Dançar Hans van Manen, reunia quatro peças, de períodos diferentes da sua obra, e todas, à excepção, de Sarcasm, parte do repertório da CNB. Permitia-se assim encontrar linhas comuns, que davam ao espectador a oportunidade de observação de construção de um universo temático, no qual o intérprete serve a coreografia, e esta existe para lá das margens interpretativas.

Trata-se de um trabalho onde o corpo se apresenta, sem cenários ou adereços, através de linhas e frases simples, pensadas a partir da orgânica dos corpos e das relações humanas. E, no qual, a música (Karayev, Scarlatti, Cage, Prokofiev, Bach e Piazolla) exerce influência, podendo moldar, potenciar e mesmo apagar comportamentos. Estamos perante um trabalho onde o peso da coreografia verga a individualidade interpretativa, sujeitando-a a um discurso limitado, pouco interventivo e nada moldável. São corpos sem tempo, sem peso, sem identidade. Por isso mesmo, nas várias peças é possível encontrar pontos de toque, que denunciam uma plástica coreográfica onde é o conjunto apresentado e a sensação final que importam.

Kammerballett Foto: Alceu Bett

Na primeira peça apresentada, Kammerballett (1995), a arquitectura do espaço é desenhada por um enorme círculo branco onde se cruzam pares monocromáticos (amarelo, preto, bordeau, laranja) de bailarinos que, com ou sem a ajuda de bancos de madeira, têm no centro do corpo o eixo, a partir do qual constroem formas geométricas reconhecíveis. O grupo, organizado e definido, funciona como um todo executante, que se divide em solos, duetos ou movimentos de conjunto, às vezes demasiado extensos, numa coreografia que, sendo coerente em si, faz menos do que a paisagem que julga desenhar. Assiste-se à instalação de um ritual, mesmo que seja evidente a recusa de construção de uma narrativa. Ainda assim, sente-se que estes corpos (sonolentos e mecanizados) existem por deferência de uma mão manipuladora, que os controla. Razão pela qual há neles um apagamento constante numa exibição para um elemento ausente.

Esta ideia de exibição toma contornos bastante mais expressivos nas duas peças seguintes, Sarcasm (1981) e Solo (1988). Na primeira, em estreia nacional, o par (Barbora Hruskova e Carlos Labiós) estabelece diálogos com o pianista em palco (José João Santos), através dos quais vai impondo um discurso amoroso feito de competição, que, naturalmente resultará na reconciliação. Assente numa estrutura de repetição simplista e quase infantil, há nas expressões dos intérpretes um desenho de emoções primárias, que servem um reconhecimento imediato do espectador. Estabelecem-se, assim, outros diálogos de identificação, para um exercício anatómico algo fútil e pouco coerente. O par, que parece brincar aos jogos amorosos de salão de corte, não tem espessura e não resiste ao fraseado musical. O que denuncia uma colagem do movimento à música, sem que desta união nada surja.

Em Solo, a mais conseguida das peças apresentadas neste programa, os três bailarinos (Pedro Mascarenhas, Can Arslan e Kürsat Kiliç), apresentam-se em solos individuais à velocidade da banda sonora de Bach, alterando a sua apresentação num curioso confronto, através do qual se desenha uma coreografia de conjunto repartida pelos três. É, por isso, uma coreografia perversa, pois sustentam-se no que não vêem, para tentarem uma superação. Não por ser exactamente pertinente, mas por denunciar essa exposição do intérprete para um público (ou para quem vê – aqui a dimensão de corte é por demais evidente), há em Solo uma vontade de trabalhar as formas e os modelos dentro das fronteiras pré-definidas. A relevância de Solo reside pois no modo como três corpos acreditam ser individuais, mesmo que a desconstrução do gesto clássico seja comprometida pelo espartilhar do corpo do intérprete e pela exagerada expressão facial, forçando o gesto a leituras por demais evidentes. E limitando a recepção do conjunto.

5 Tangos Foto: Alceu Bett

Já em 5 Tangos (1977), uma das mais conhecidas peças de Hans van Manen, a música de Astor Piazolla serve para o coreógrafo criar uma visão de conjunto das relações humanas, sabendo, à partida, que o tango é a música da paixão por excelência. Se podemos achar curiosa a forma como equilibra movimentos do bailado clássico com passos do tango, não podemos deixar de sentir que há um comprometimento que impede a autonomização dos sentimentos que quer transmitir. Faça-se o exercício de se assistir à coreografia sem se ouvir a música, e percebe-se como o gesto apresentado é profundamente falso.

Há na narrativa dos corpos (o tango tem narrativa, logo os corpos que o dançam também) uma vontade de instalação dos confrontos emocionais que o tango preconiza (ou nos quais se sustenta), mas que são impedidos, por exemplo, pela graciosidade que se impõe às bailarinas, ou mesmo no momento em que um par masculino (frágeis Mehmet Yümak e Ediz Ergüç) tem a oportunidade de dançar um discreto pas-de-deux. Neste desajuste de intenções, homens e mulheres parecem dançar sozinhos, o que até poderia funcionar como leitura para muitas letras de tango, já que a solidão do amor não existe só sem par. No geral, 5 Tangos peca por querer construir uma ambiência de pressão e desejo, parecendo esquecer que a violência do tango (mesmo a interior), pode ser anulada pela leveza do bailado.

Hans van Manen desenha coreografias onde o primado da execução técnica e a instalação de ambiências se sobrepõem ao espaço de criação do intérprete e às especificidades de uma companhia. Razão pela qual os seus trabalhos encontram eco em companhias de repertório, no que isso, por vezes, significa de trabalho ausente de individualidade, e existência de um corpo artístico fixo a um exercício de cumprimento dos códigos visíveis, funcionais e perpétuos da dança. Mas, muito em especial, feito para um público que quer ser entretido. Ou, no limite, vê no bailarino (e no seu trabalho), apenas e só uma função executora.

Isto não é um problema em si mesmo, se considerarmos que é a função de uma companhia nacional a recuperação de trabalhos onde a história da dança, ao ser questionada, o é em função de uma procura para a sua legitimação, mas também enquanto agente activo e consciente do que é relevante apresentar a esse mesmo público. Porque a formação de públicos não se faz só na perpetuação de repertórios, mas também, e sobretudo, no seu questionamento. Ou seja, as escolhas de repertório devem passar por um diálogo franco, aberto e pertinente com o meio onde se insere, e menos, com aquilo que se entende ser “a obrigação”. O tempo (das peças e do meio) deve ser a única obrigação a respeitar.

Solo Foto: Alceu Bett

Razão pela qual a apresentação deste programa de Hans van Manen se reveste de particular importância. É que este programa, tendo sido pensado antes do fim do Ballet Gulbenkian (BG), obriga-se agora a uma outra relação com o tecido onde se insere. Muito em particular porque o fim do BG fez com que os holofotes se virassem para a CNB, que, durante muitos anos viveu à sombra daquele. Pese embora o trabalho de alguns directores e até das circunstâncias de produção, ou mesmo das escolhas do público. Antes de Junho de 2005, as coisas eram pacíficas. Contemporâneo era na Gulbenkian, clássico na CNB. Mas o quadro mudou, o que se, na verdade, não apanhou totalmente de surpresa grande parte dos agentes, expôs as fragilidades do sistema.

Será, então, legítimo perguntar qual o papel que a CNB quer ocupar na cena nacional, depois do fim do Ballet Gulbenkian, e enquanto companhia estatal? Ou seja, enquanto representante daquilo que o Estado entende ser o seu papel activo na definição de uma relação da dança com o público? Parece-me que sim, sobretudo quando estamos a dias de ser apresentada a programação para a próxima temporada, e a um ano do fim do contrato com o director artístico Mehmet Balkan. Em particular porque o que corre não anuncia a melhor das mudanças.

Sabendo, obviamente, que o papel de uma companhia nacional passa pela manutenção de um repertório, abrangência de públicos menos “elitistas” - ou que têm da arte uma visão standartizada e pouco evolutiva -, é importante perceber que sendo responsável pela aproximação de públicos, a CNB deverá procurar eixos que interliguem a história com as expressões de arte menos formatáveis. E, por isso, procurar dentro do trabalho de repertório, peças que estabeleçam diálogos com o passado e o futuro. E não peças que existam simplesmente (ou se justifiquem) pela execução virtuosa ou construção simplista. O equilíbrio da imagem de uma companhia de dança estatal passa por perceber que deve chegar ao mais amplo dos públicos (formatado, negligente, crítico, consciente, disruptor, …), e não, como parece por vezes, contribuir para o fosso entre os espectáculos e o público, e destes entre si.

Outros espectáculos da Companhia Nacional de Bailado analisados neste blog:

Sonho de uma noite de verão , de Hans Spoerli (Junho 2005)
Pedro e Inês , de Olga Roriz (Julho 2005)

1 comentário:

UniversitYliopisto disse...

as fotografias são assustadoras...