segunda-feira, outubro 10, 2005

Para uma radiografia do teatro para a infância e juventude em Portugal


Podíamos perguntar-nos se é relevante fazer-se a distinção entre ‘teatro para a infância e juventude’ e ‘teatro para adultos’ se, como escreveu Almada Negreiros, “uma criança é, tão só, um adulto de olhos abertos”. Esta divisão pressupõe esquecermo-nos de uma outra faixa etária, talvez mais frágil, porque presa entre dois universos: a adolescência. O que levaria a uma reflexão sobre o modo como os adolescentes são pensados pelas diversas formas de arte e se entregam a modelos de ocupação, por vezes, demasiado superficiais e contra-producentes.

Mas se, em nome de uma organização, se impõe a diferenciação, não é menos verdade que tal divisão implicará um confronto das diversas propostas, forçados que somos a encontrar modelos estéticos, sociais, políticos e, a um nível mais rudimentar e nada condicente com a prática artística, ocupacionais e utilitários.

Em Portugal as condições de produção de teatro para a infância e juventude nunca estiveram ao nível das criações “para adultos”. Nem mesmo no período imediatamente a seguir à revolução de 1974, que derrubou, de forma pacífica, uma ditadura, de mais de 40 anos, onde o aparecimento de novas companhias (independentes dos apoios estatais, libertas de ideologias fascizantes, preocupadas com um lugar para a educação do povo através da confrontação com modelos experimentados no estrangeiro), foi acompanhado pelo surgimento de companhias preocupadas com a criança. Sobretudo, com uma criança que pudesse representar o futuro de um país. São vários os exemplos de projectos para este público, mesmo em companhias "para adultos".

Maria João Brilhante, investigadora do Centro de Estudos de Teatro assume em questionário realizado para a elaboração desta comunicação, que hoje, os espectáculos infanto-juvenis deveriam ser pensados e realizados de acordo com alguns critérios. Nomeadamente “o repertório, meios, a partir de que critérios se adequam ao público, a sua relação com a escola, que conhecimentos mostram ter do que se faz noutros países, e o que conhecem de psicologia infantil". Em Portugal, não é só neste género teatral que existem problemas. Mas no que a ele diz respeito, falta um verdadeiro ensino de educação pela arte, um sistema de protecção dos projectos infanto-juvenis, uma rede de parceiros interessados não só em procurar apoios mas a investir, criadores que reflictam sobre o papel das artes performativas e a influência nos mais jovens, espaços especializados para estes projectos (e não salas esconsas como alguns serviços educativos de museus e teatros) e, sobretudo, uma cultura de base que coloque as artes performativas como elemento essencial para a aprendizagem de um quotidiano.

Razão pela qual se deveria dar mais atenção ao trabalho desenvolvido por algumas companhias junto das escolas. Uma vez que esta ligação às escolas pode correr contra os projectos infanto-juvenis, já que muitos deles encontram nestas, uma hipótese de sobrevivência, por vezes criando espectáculos cuja vertente pedagógica é descurada. Sobretudo, porque é nas próprias escolas que se fomenta uma prática teatral muito pouco condicente com realidades artísticas. Realidade, aliás, que é necessário combater, uma vez que “convém afirmar, de forma radical, que a experiência teatral na escola será sempre parateatro, isto é, uma aproximação (iniciação) à arte teatral, mas que não é teatro”, como dizem, os autores do livro Teatro na Escola – A Nostalgia do Inefável (Quinta Parede, p. 11, 1999). Em Portugal, a opção pelo teatro nas escolas é, em muitos casos, uma opção de recurso, uma vez que os alunos podem, de facto, ser entretido e ocupados com exercícios pouco dispendiosos e que alimentem fantasias e deslumbres pela representação.

Mas a crítica, que papel terá enquanto agente de reflexão sobre o que se vai fazendo nesta área? Em Portugal já não se publicam críticas de teatro infanto-juvenil, nem sequer nos meios especializados, como as revistas para pais e filhos, educadores, etc. Tempos houve, no final dos anos 70 e até ao início da década de 90, em que os críticos de teatro viam tudo e se permitiam à criação de grelhas de análise que interpretassem os espectáculos infanto-juvenis numa lógica de construção de um tecido criativo comum. Os nomes principais da crítica nacional faziam o seu trabalho de confronto, com a mesma lógica e determinação com que avaliavam as propostas “para adultos”. Mas hoje são residuais, para não dizer inexistentes, os exemplos de crítica a estes espectáculos. Por vezes um festival vê criticada uma ou duas propostas.

É verdade que no renovado prémio da crítica da APCT – Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, uma das menções honrosas foi para um projecto dedicado ao infanto-juvenil, Percursos, do Centro Cultural de Belém (um projecto multidisciplinar para a infância e juventude, que tem percorrido várias cidades do país com residências, site-specific, workshops e espectáculos). E as causas são simples. Não só a qualidade escasseia, como a oferta de ‘teatro para adultos’ é variada, e o espaço de escrita cada vez mais reduzido. Esta realidade da crítica portuguesa acompanha o panorama do teatro infanto-juvenil em Portugal.

Alguns dos criadores de espectáculos para este público reconhecem que “um dos motivos de marginalização deste teatro é a idade [do] público, público que ainda não produz e ainda não pode votar. Numa sociedade de adulto-centrismo as crianças não são consideradas cidadãos de pleno direito e portanto sem direito de fruir de criações teatrais exclusivamente endereçadas a elas.” (in catálogo da ATINJ – Associação de Teatro para a Infância e Juventude, 2004). E, uma observação rápida pelos dados estatísticos dos programas de apoios pontuais e sustentados (e incluídos os festivais) dos últimos 5 anos do Instituto das Artes/Ministério da Cultura (única entidade que os atribuí de forma regular malgré elle même), indica-nos que, em termos percentuais, os espectáculos infanto-juvenis correspondem a 18.91% do total de apoios.

Isto quando um dos critérios de avaliação e reconhecimento das propostas é, precisamente “promover o gosto pela fruição e prática artística na área do teatro [dança, música, inter e pluridisciplinares], em especial nas crianças e nos jovens, nomeadamente estimulando relações com estabelecimentos de ensino, seus professores e alunos” (artigo 2, ponto 1º, alínea e do regulamento de apoio), e para aferir da sua validade, é tida em conta “o plano de acções pedagógicas dirigidas aos diversos públicos” (artigo 5º, ponto 1, alínea i, idem). Mas, curiosamente, os projectos para teatro infanto-juvenil não se vêem obrigados a um acompanhamento pedagógico, e muito menos são alvo de um programa de apoios separado do concurso geral, com, por exemplo, a colaboração do Ministério da Educação.

O que é tanto mais curioso se, como apontou a APCT – Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, aquando da atribuição da Menção Honrosa dos Prémios da Crítica 2004 ao projecto Percursos, do Centro Cultural de Belém se prende "com um preconceito de base dominante na sociedade portuguesa relativo à especificidade dos espectáculos para crianças, tendencialmente considerados como alguém que deve ser ensinado, instruído, controlado ou apenas distraído por algumas horas” (Ana C. Pais, Sinais de Cena nº1, Junho 2004, p.26, ver artigo no link Sinais de Cena/Artigos).

Na verdade, em Portugal (mesmo com honrosas excepções) acha-se que o público, mais do que nascer ensinado, vai lá por si. Ora, é perceber as prioridades das opções governativas, as escolhas culturais que muitos cidadãos fazem e observar os exemplos de falta de civismo, para perceber que a selecção natural não é uma boa aposta. Que adultos queremos ter, é a pergunta. E que pode o teatro fazer para um futuro menos negro?
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Remontagem do texto apresentado no Seminário Internacional para Jovens Críticos de Teatro - Montréal, 20 a 26 Setembro 2005, organizado pela Associação Internacional de Críticos de Teatro, no âmbito do 15º Festival International des Arts pour la Jeunesse. O Seminário foi coordenado por Margareta Sorenson e Michel Bélard, e contou com participações de Suécia, Coreia do Sul, Bélgica, Croácia, Quebec e Portugal.

Participação a convite da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, com o patrocínio do Instituto Camões.

Agradecimentos: Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, Instituto Camões, Maria Helena Serôdio, Maria João Brilhante, Mónica Guerreiro, Teatro de Ferro/Igor Gandra, A Tarumba/Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas, Teatro Infantil de Lisboa.

No Seminário foi apresentada uma versão em inglês, cuja tradução ficou a cargo de José Luis Neves. A referida versão ficará brevemente disponível no site do Instituto Camões.

Brevemente serão publicadas as análises críticas aos espectáculos apresentados no 15º Festival International des Arts pour la Jeunesse.

3 comentários:

Dinamene disse...

Não há aqui nenhuma novidade relativamente a outros campos para os mesmos públicos.
Arte na escola? Teatro na escola? Música na escola? Pintura na escola?
E a televisão? Uma risota.
Não, não é isto nem aquilo. É a falta, pura e simples, de qualquer projecto educativo, artístico, infelizmente, Tiago. Sei do que falo. Tenho filhos. Correram várias escolas... e colégios.
E de crítica, eh pá, só se for para rir. Não vejo crítica em lado nenhum.
E sim, se houver oferta, séria, de certeza que há público(s).
Desculpa se estou azedo, mas vá lá, gostava que «cavasses mais fundo». Pode ser?
Abraço.

Tiago disse...

ó Carlos, "cavarei" sim, mas não aqui. Este foi um texto de âmbito geral para estrangeiro entender. Razões mais profundas precisam de mais tempo e outro espaço que não um seminário internacional. Mas não te preocupes, que estou a tratar disso.

Anónimo disse...

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