sexta-feira, dezembro 17, 2004

Natércia Freire (1920-2004)


busto de Martins Correia

Faleceu hoje Natércia Freire. Mais do que a poetisa, a mulher. Mulher que me ensinou a olhar as coisas para lá do superficial; que me deixou entrar no seu mundo e quis partilhar da sua vida; mulher que me ofereceu mais do que achava que estava a dar; mulher que me transformou enquanto pessoa atenta.

Conheci a Natércia Freire há alguns anos, através do seu neto, Pedro Sena-Lino. Na altura a figura frágil surprendeu-me pela força e coragem com que enfrentava os desafios do dia a dia. Não há palavras para a descrever. Ou para revelar o que dela absorvi.

Uma das mais importantes vozes da poesia portuguesa; mulher lutadora que fez mais do que podia por gerações de autores; mulher que sofreu na pele as ambiguidades dos tempos revolucionários. Mulher-toda.

A vida traíu-a e abandonou-a nestes últimos meses. Partiu.


Um dia partirei, muito cansada,
com as lembranças cingidas ao meu peito
e uma voz de saudade e de nortada.

(Levarei voz para gemer de espanto.
Levarei mãos para dizer adeus...
Olhos de espelho, e não olhos de pranto,
eu levarei. Os olhos, serão meus?)

Um dia partirei, talvez manhã.
Uma canção de amor virá das dunas.
De finas pernas, seguirei a margem
límpida, boa, enorme, no ribeiro
de água discreta a reflectir miragem,
braços de ramos, gestos de salgueiro.

Um dia partirei, muito diferente.
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de Cá hão-de achar que vou contente.


(Um dia, 1947)



Até ao bosque dos incensos, doce Natércia.

1 comentário:

Pedro Farinha disse...

Só conheci a Natércia à distância de quem a lê. A literatura não ficou mais pobre porque as suas palavras permanecem vivas, mas sem dúvida que foi uma grande perda.