sábado, dezembro 18, 2004

Natércia Freire in memoriam

Hoje, no Diário de Notícias


A clara nocturnidade de uma poesia alada
Ana Marques Gastão




Uma sede de absoluto, a vida como um contínuo exercitar da morte, a memória e a infância, a saudade e a solidão, o mistério e a dúvida, o despojamento e a contemplação, o espaço e a paisagem, sobretudo de eco ribatejano, são, em síntese, os temas que percorrem a poesia de justa cadência musical e tendência romântico-simbolista de Natércia Freire. A poetisa de Liberta em Pedra, contista, crítica literária e tradutora, que dirigiu durante 20 anos, até 1974, com rigor e isenção, o suplemento literário Artes e Letras, do Diário de Notícias, morreu, ontem, em Lisboa, aos 85 anos. Havia nascido em Benavente.

Para Natércia Freire, a poesia era arte que vê. Algo para lá do visível, escrita lunar com asas, estranheza que dá felicidade, inquietação e espaço nostálgico, mas uno, aberto à transfiguração visionária. A poetisa começa por exprimir-se pela mão de uma de suas irmãs, a romancista e ensaísta Maria da Graça Freire, autora de A Primeira Viagem - Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências, na década de 60 -, a quem pediu, um dia, que a ensinasse a escrever «Ela falou-me na luz das ruas e surgiu um poema: "Ó cabecinhas de luz que andais dispersas nas ruas."» Mais tarde, por influência de José Osório de Oliveira, abandonará a música para se dedicar totalmente à escrita.

Caminho este, o das palavras, atravessado pelo irreal, aberto a uma clara nocturnidade de vertente intimista a que tão bem assenta a definição da sua «irmã» brasileira Cecília Meireles, como o foi, aliás, Clarice Lispector «A poesia é grito, mas transfigurado.» Não se trata de uma escrita de cristalização retórica, a de Natércia Freire, mergulhada na dor de uma intensa alegria. Dir-se-ia uma missão a cumprir, uma vocação de silêncio, revelando-se nos fragmentos de um corpo doloroso e incompleto, febril e, no entanto, generoso: «Nada que tive era meu/e o corpo não quero eu./Podia servir de embalo,/mas serve de sepultura./Cemitério de asas finas,/tange e plange aladas crinas,/canto de praias sulinas/de infinitas amarguras...» (Poema)

Atenta à riqueza do léxico e a uma beleza não só da forma, mas da essência, a poesia de Natércia abre-se a uma musicalidade em consonância com um salto do psicológico para o metafísico, salto plenamente amadurecido e enredado numa existência supra-sensível e delicada de tipo místico «Mas às vezes há um desejo de solidão, de uma solidão breve. De morte. Falamos, os que se encontram, uma língua de tempos derradeiros.» (Entrevista ao DNa)

Quem conheceu Natércia Freire, conheceu a sua poesia, água serena na sua rebeldia e inconformação; conheceu um ser generoso, tão misterioso como atento ao Outro, tão justo como grato, na eterna meditação sobre a morte (também, a dos vivos) que foi a sua existência. Não alheada da experiência social, reflectida em poemas como Guerra ou Agiotas, a sua Obra Poética (editada pela Imprensa Nacional), na qual não incluiu os três primeiros livros, vive na «sombra de uma outra luz», espécie de presença na ausência «Distância de eu ser distância/A um ponto/Que em mim alastra.» (Liberta em Pedra). A Assírio publicaria, entretanto, em 2001, uma justa antologia, com capa de Ilda David, e incluindo inéditos.

É o espírito a reger o discurso naterciano, que se abeira da exterioridade como uma criança sedenta. São apelos de um ser ausente, perdido e alado, que nele encontramos, sem começo definido ou epílogo repousante, antes «lugar» sem tempo, corrente de consciência de densa experiência existencial. Como se algo de essencial tivesse fugido num desejo de continuidade. Como se, na respiração do vazio, o seu «corpo de água» se completasse pelo mistério dos sentimentos.

À obra de Natércia Freire dedicaram-se críticos como David Mourão-Ferreira, autor do prefácio da Obra Poética, António Ramos Rosa, Eduíno de Jesus, João Bigotte Chorão, João Gaspar Simões ou António Quadros, entre outros. Familiar com a lírica do Ocidente e dos textos bíblicos, herdeira também de um sopro anteriano e da ausência de esperança de Pessanha, a poesia da também contista d'A Alma da Velha Casa reflecte tanto o desprazer como a libertação, o desejo como a perda «Depois, ante os fatos podres,/- Minha solidão de mundos,/Meu sonho esparso e sem chão -/Parem séculos e séculos./Sobre esta fronte rebelde,/Distante, erguida/E vencida,/Inscrevam as agonias/que foram da minha vida.» (Horizonte Fechado)

Em tempos, escrevi sobre a casa poética de Natércia Freire - autora de livros como Rio Infindável, Liberta em Pedra, Os Intrusos, Liberdade Solar ou Foi Apenas Ontem -, a «de ser mão que na palavra escrita ou falada capta, vê, abarca o que pode ser durável». Escrevi sobre esse seu segredo ou iluminação, essa doce ansiedade ou cálido assombro. A morte que sempre a habitou como premonição, como um outro lado cristalino da vida, já não é hoje esboço de angústia, «onírica miragem». Pousou nela e adormeceu, luminosa e muda, ao som do ruído da água.

O corpo de Natércia Freire está em câmara-ardente nos Jerónimos, celebrando-se missa hoje, às 14.30. O cortejo fúnebre seguirá, às 15.00, para o cemitério da Ajuda.


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