sexta-feira, dezembro 24, 2004

Ainda (e sempre) sobre Natércia Freire

por Eduardo Prado Coelho, no PÚBLICO, hoje

Natércia

Uma sociologia da literatura não poderá deixar de querer entender os mecanismos colectivos que explicam que escritores que tiveram grande sucesso em determinado momento pareçam a dada altura ter desaparecido - o que não significa que não possam ser "reabilitados" do "esquecimento injusto" que sofreram. Mas cada época é o conjunto das suas evidências e dificilmente conseguimos saltar sobre nós próprios. No excelente texto que João Barrento escreveu no Mil Folhas sobre o alemão Durs Grunbein, diz a dada altura: "Poeta que se quer de hoje, de aqui e de agora, sem nostalgias, sem metafísicas, sem ensimesmamentos. Só uma poesia assim (e que, naturalmente , inclui alguma que vos vem do passado e do futuro) pode interessar a quem busca na poesia o que é de hoje e está vivo, aqui e agora."

O caso de Natércia Freire (que morreu há dias, com 85 anos, no Ribatejo onde sempre a conheci) é extremamente interessante. Foi um nome muito conhecido, um autor muito lido e estudado por ensaístas da primeira linha e uma personalidade poderosa pelo facto de ter dirigido o suplemento literário do "Diário de Notícias". E depois deixou de ser lida, apesar da antologia que dela saiu na Assírio e Alvim em 2001. As suas referências eram brasileiras: Cecília Meireles e Clarice Lispector (embora Clarice tenha uma agudeza metafísica, e não uma metafísica poética, que a demarca claramente de Natércia, e mesmo de Cecília Meireles).

Houve um certo número de razões de ordem política que explicam este eclipse (como assinala o seu afastamento do "Diário de Notícias"). Mas isso não seria determinante, se não fosse o facto de a poesia de Natércia Freire, de uma imensa musicalidade, se basear na separação entre um vocabulário estritamente poético (onde não caberiam palavras como motocicleta ou salsa) de um vocabulário pragmático. E isso correspondia à ideia de que existia uma "vida literária" em que alguns se inscreviam com os seus versos e que sublimava a vida quotidiana. Ora toda a literatura contemporânea se baseia num processo de dessublimação que põe em causa os que se investem no papel de poetas.

Natércia Freire (cuja obra merece ser relida no quadro do tempo que é o seu) era amiga do meu pai. Em sua casa, onde fui várias vezes com ele e a minha mãe, cruzavam-se pessoas extremamente diferentes: desde o meu pai, que era um convicto adversário do regime, até Fernanda de Castro. Foi num desses almoços que, já durante o café, Fernanda de Castro contava o alvoroço em que ficara quando lhe tinham dito que o António Quadros, seu filho, assinara um manifesto contra o Governo. Afinal era apenas um engano provocado pelo facto de João Pedro Grabato Dias assinar com o pseudónimo de António Quadros. Foi aí, com uma ingenuidade totalmente adolescente, que tentei fazer uma discussão sobre democracia, matéria em que fui completamente destroçado.

Passadas algumas semanas Natércia Freire publicou o primeiro poema, que divulguei fora dos suplementos juvenis. Foi o primeiro e quase o último - o que prova que Natércia era uma mulher generosa. A sua obra repete em todos os tons que a poesia existe. Verdadeiro ou falso, isso basta para atravessar uma vida.


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