Análise ao espectáculo Querosene (" arde sem se ver")
teatromosca
6ª Mostra de Teatro Jovem
Teatro Taborda
20 Novembro
22h00
O espectáculo do teatromosca Querosene (" arde sem se ver"), utiliza a estrutura narrativa do pequeno conto auto-biográfico de Ivan Turgueneiv, "Primeiro Amor" (1860) para dar conta dos diversos estados amorosos. Fá-lo de forma interessante utilizando poemas de autores portugueses (1) (quase todos incompreendidos no amor, amargurados com a vida, presos a paixões insolúveis ou incapazes de relacionamentos eficazes), chegando mesmo a substituir a dramaturgia de Turgueneiv por esses poemas. Se isto revela, por um lado, um controlo sobre um trabalho de construção de um texto/espectáculo e manipulação das diversas vozes em torno de um objectivo comum (uma universalização do lamento amoroso), depressa se torna um exercício de estilo que acusa a vontade de apelar a vários públicos e registos.
Pensado para cumprir o calendário e o programa escolar (mas apresentado aqui um contexto de espectáculo para adultos, e nessa medida analisado), Querosene peca por tentar equilibrar esse interessante cruzamento de linguagens (conto e poemas) com um recital de poesia. O problema não está tanto na conteúdo, mas na forma. A gradual contaminação do texto russo pelos poemas portugueses apresenta uma estimulante abordagem ao ciclo amoroso ("encantamento e expectativa, a incerteza angustiante, a consolidação e fidelização do amor, o extâse e a ruptura") e até cumpre as noções de Herbert Blau (2) quanto à adaptação dos clássicos: estes devem sempre servir-se de uma leitura contemporânea; não faz sentido a repetição de usos e costumes já que não ninguém estava lá para comprovar como se fez.
Contudo, o sentido do rigor e até (ousa-se) a ideia de que se possa estar a destruir o sentido original dos poemas, levam a que depois da utilização de um deles em vez do texto de Turgueneiv, os actores o identifiquem. Ou seja, anula-se o efeito de contaminação já que se recusa a universalização de um sentimento. Efectua-se um duplo corte emocional na relação com o espectáculo. O primeiro quando se incluem os poemas, o segundo quando se identificam. E o espectador, que ia caminhando no reconhecimento dos conflictos das personagens de Turgueneiv é assim abandonado numa dramatização dos poemas.
O problema não está, como já se percebeu, nessa dramatização. Basta pensar em exemplos recentes no cinema ("Romeu e Julieta", "Moulin Rouge" de Baz Luhrmann) ou no teatro ("Rua de Sentido Único", de Mónica Calle; "Nocturno Delirante", do Cão Solteiro; "De repente eu...", do Teatro Praga) para compreender que se a intenção é passar uma mensagem de apropriação de universos cúmplices, basta utilizá-los sem o receio de os perverter. As obras de arte são universais, logo de qualquer um. Se o teatromosca procurava educar o público, poderia ter feito distribuir umas folhas com os poemas e autor. Isso acontecer durante o espectáculo soa sempre a desequilíbrio dramatúrgico. Ainda mais se o cenário e adereços são compostos de metáforas e alusões que permitem ao espectador toda e qualquer identificação. Afinal, serve para umas coisas e não serve para outras? O momento em que este anacronismo se torna mais evidente é na sequência da discoteca em que um histriónico (mas devidamente contextualizado) Pedro Mendes (o pai) se atira ferozmente a um poema de Almeida Garrett, "Não te amo não" como técnica de sedução à jovem indecisa. A velocidade e entrega do momento caem por terra quando, ainda em pose, o actor identifica o poema.
Querosene é, contudo, um belo exercício de ode amorosa. A breve e perturbadora história de rivalidade entre um pai e um filho (Pedro Alves) na conquista da mesma mulher (Rute Lizardo) servem de estudo para essa coisa devastadora que é o amor. Espectáculo sexualmente intimidante (o olhar alienado de Pedro Alves é revelador da confusão de sentimentos do jovem Turgueneiv) e austero (uma mesa e duas cadeiras, palco vazio, luzes sombrias e soturnas), oscila entre a procura de uma explicação para o amor e a assunção da fatalidade do mesmo. É, por isso, um enorme novelo de lã agridoce (tal como os que são desfiados durante o espectáculo).
Em suma, Querosene utiliza a convenção teatral e a dimensão generalista das obras dramáticas para dar conta de um estado de espírito. Provavelmente, como em todas as relações muito intensas, a dada altura perdeu o sentido.
(1) Fernado Pessoa/Álvaro de Campos, Luis de Camões, Camilo Pessanha, Almeida Garrett, Alexandre O'Neill, Antero de quental, Mário de Sá Carneiro
(2) Herbert Blau, Theatrer: A Manifesto, New York, 1964
Pensado para cumprir o calendário e o programa escolar (mas apresentado aqui um contexto de espectáculo para adultos, e nessa medida analisado), Querosene peca por tentar equilibrar esse interessante cruzamento de linguagens (conto e poemas) com um recital de poesia. O problema não está tanto na conteúdo, mas na forma. A gradual contaminação do texto russo pelos poemas portugueses apresenta uma estimulante abordagem ao ciclo amoroso ("encantamento e expectativa, a incerteza angustiante, a consolidação e fidelização do amor, o extâse e a ruptura") e até cumpre as noções de Herbert Blau (2) quanto à adaptação dos clássicos: estes devem sempre servir-se de uma leitura contemporânea; não faz sentido a repetição de usos e costumes já que não ninguém estava lá para comprovar como se fez.
Contudo, o sentido do rigor e até (ousa-se) a ideia de que se possa estar a destruir o sentido original dos poemas, levam a que depois da utilização de um deles em vez do texto de Turgueneiv, os actores o identifiquem. Ou seja, anula-se o efeito de contaminação já que se recusa a universalização de um sentimento. Efectua-se um duplo corte emocional na relação com o espectáculo. O primeiro quando se incluem os poemas, o segundo quando se identificam. E o espectador, que ia caminhando no reconhecimento dos conflictos das personagens de Turgueneiv é assim abandonado numa dramatização dos poemas.
O problema não está, como já se percebeu, nessa dramatização. Basta pensar em exemplos recentes no cinema ("Romeu e Julieta", "Moulin Rouge" de Baz Luhrmann) ou no teatro ("Rua de Sentido Único", de Mónica Calle; "Nocturno Delirante", do Cão Solteiro; "De repente eu...", do Teatro Praga) para compreender que se a intenção é passar uma mensagem de apropriação de universos cúmplices, basta utilizá-los sem o receio de os perverter. As obras de arte são universais, logo de qualquer um. Se o teatromosca procurava educar o público, poderia ter feito distribuir umas folhas com os poemas e autor. Isso acontecer durante o espectáculo soa sempre a desequilíbrio dramatúrgico. Ainda mais se o cenário e adereços são compostos de metáforas e alusões que permitem ao espectador toda e qualquer identificação. Afinal, serve para umas coisas e não serve para outras? O momento em que este anacronismo se torna mais evidente é na sequência da discoteca em que um histriónico (mas devidamente contextualizado) Pedro Mendes (o pai) se atira ferozmente a um poema de Almeida Garrett, "Não te amo não" como técnica de sedução à jovem indecisa. A velocidade e entrega do momento caem por terra quando, ainda em pose, o actor identifica o poema.
Querosene é, contudo, um belo exercício de ode amorosa. A breve e perturbadora história de rivalidade entre um pai e um filho (Pedro Alves) na conquista da mesma mulher (Rute Lizardo) servem de estudo para essa coisa devastadora que é o amor. Espectáculo sexualmente intimidante (o olhar alienado de Pedro Alves é revelador da confusão de sentimentos do jovem Turgueneiv) e austero (uma mesa e duas cadeiras, palco vazio, luzes sombrias e soturnas), oscila entre a procura de uma explicação para o amor e a assunção da fatalidade do mesmo. É, por isso, um enorme novelo de lã agridoce (tal como os que são desfiados durante o espectáculo).
Em suma, Querosene utiliza a convenção teatral e a dimensão generalista das obras dramáticas para dar conta de um estado de espírito. Provavelmente, como em todas as relações muito intensas, a dada altura perdeu o sentido.
(1) Fernado Pessoa/Álvaro de Campos, Luis de Camões, Camilo Pessanha, Almeida Garrett, Alexandre O'Neill, Antero de quental, Mário de Sá Carneiro
(2) Herbert Blau, Theatrer: A Manifesto, New York, 1964
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