As coisas más acontecem
Análise ao espectáculo TartNoir
Associação Cultural e Recreativa Hipócritas
6ª Mostra de Teatro Jovem de Lisboa - MostraTE
Teatro Taborda
18 Novembro 2004
22h00
Na proposta da Associação Cultural e Recreativa Hipócritas, há mulheres que vestem sapatos vermelhos e matam; há outras mulheres que ouvem histórias sem saber se as estão a viver; há homens e mulheres que se atravessaram no caminho das pessoas (das mulheres!) erradas. TARTNOIR é um espectáculo que pode ser lido como um manual de sobrevivência para mulheres em situações difíceis. TARTNOIR está do lado das suas personagens, porque «as coisas más acontecem». TARTNOIR pode funcionar como aviso para quem o vê. TARTNOIR não perdoa. Porque isso era deixar as coisas como estão.
Adaptando um conjunto de contos, segundo as autoras, neo-feministas, e editado em 2000, este espectáculo tenta seguir à risca o princípio imposto pelas autoras do livro, Stella Duffy e Lauren Hendersen: «We asked the authors to 'push themselves' - to go for something nastier or sexier or funnier or darker. We wanted them to write a story that perhaps their own editor wouldn't usually let them get away with, just as long as it fell into the tart noir remit: maybe comedic, maybe violent, maybe sexual, definitely new-woman, neo-feminist, strong, smart and sharp. With not a dippy heroine walking into a dark cellar in sight. Not a lot of brave bloke heroes saving the day on the final page either.» Digo "tenta" porque as fragilidades desta proposta não estão no conteúdo ou na forma mas no modo como se articulam as fragilidades de um grupo amador e o poder dos objectos que manipulam.
Com uma energia e uma entrega alucinantes, TARTNOIR é, contudo, atropelado pela ingenuidade de alguns dos intérpretes. Mesmo que se perceba que lhes falta a experiência e a vontade de fazer seja maior que a forma de o fazer. TARTNOIR é, por isso, um espectáculo que em vez de ingénuo (ninguém o pode ser com um texto deste) é crente. São notórias as dificuldades de fazer aguentar a força do texto e das suas implicações. Não se pode dizer que não o consigam. Mas não chega. O anacronismo é demasiado óbvio. O exemplo mais forte reside nos apontamentos cómicos que acentuam essas fragilidades (perfeitamente compreensíveis, obviamente) das interpretações em vez de ajudarem ao equilíbrio da estimulante estrutura dramatúrgica/encenação.
Composto de 4 histórias e um epílogo (ou o que no final se revela a possibilidade de ser uma só história), TARTNOIR apresenta-se como um exercício de experimentação em torno do poder do feminino. Ainda que, por vezes, essa demonstração apareça com os mesmos contornos/clichés a que já nos habituámos. Culpa, crê-se, não da companhia, mas do próprio texto. As protagonistas das histórias são estereótipos femininos (a advogada devenu lésbica por causa de uma cliente sedutora, a interesseira/distraída/puta, a louca/demente passional, a velha/mal-amada, a polícia que se passa por forte mas leva o trabalho para casa) que, a certa altura, parecem responder a uma definição surgida no espectáculo: «vacas gordas que não conseguiram arranjar homem». É através das suas dificuldades (contadas em flasback à agente da polícia) que vemos o desenrolar de um trabalho sobre o estereótipo, por vezes bem trabalhado (o cruzamento de sequências), outras vezes nem tanto (cenas em formato de telejornal e entradas abusivas de figurantes). Há uma certa confusão entre o anedótico e o absurdo. E isso, num espectáculo que sendo frágil, se apresenta perante uma plateia à partida ganha, só tende a correr a desfavor para os participantes.
Não estamos assim tão distantes do universo de Patricia Highsmith, pleno de non-sense e misantropia. Há até um certo desprezo pelo futuro. O que importa é a remoção imediata do problema. E é nessa rede de referências (pessoais, culturais, sociais) que TARTNOIR aposta. Há uma tentativa de trabalhar o "boneco" de forma a apresentá-lo o mais abrangente possível. Talvez possa parecer pura especulação (num grupo de teatro amador, Hipócritas dixit, a semiótica interessa pouco), mas o facto das assassinas usarem sapatos vermelhos não me parece a despropósito. Poderia até ser uma forma de exposição do ciclo natural da mulher e de relação com o Diabo.
Esta variação/revisitação do poder no feminino está longe de acrescentar algo de estimulante à eterna e irresolúvel questão de conflicto homem/mulher. Contudo, a forma inteligente em que se contruiu a adaptação associada à generosidade que se encontra em grupos descomprometidos com os códigos rígidos e profissionais do teatro, apresenta TARTNOIR como um passo à frente nas, em muitos casos, enfadonhas e repetitivas apostas dos grupos amadores/académicos e afins...
Não tendo prometido génio, TARTNOIR é um divertimento joco-sério. E, sobretudo, honesto. Mesmo que as personagens mintam com quantos dentes têm.
Análise ao espectáculo TartNoir
Associação Cultural e Recreativa Hipócritas
6ª Mostra de Teatro Jovem de Lisboa - MostraTE
Teatro Taborda
18 Novembro 2004
22h00
Na proposta da Associação Cultural e Recreativa Hipócritas, há mulheres que vestem sapatos vermelhos e matam; há outras mulheres que ouvem histórias sem saber se as estão a viver; há homens e mulheres que se atravessaram no caminho das pessoas (das mulheres!) erradas. TARTNOIR é um espectáculo que pode ser lido como um manual de sobrevivência para mulheres em situações difíceis. TARTNOIR está do lado das suas personagens, porque «as coisas más acontecem». TARTNOIR pode funcionar como aviso para quem o vê. TARTNOIR não perdoa. Porque isso era deixar as coisas como estão.
Adaptando um conjunto de contos, segundo as autoras, neo-feministas, e editado em 2000, este espectáculo tenta seguir à risca o princípio imposto pelas autoras do livro, Stella Duffy e Lauren Hendersen: «We asked the authors to 'push themselves' - to go for something nastier or sexier or funnier or darker. We wanted them to write a story that perhaps their own editor wouldn't usually let them get away with, just as long as it fell into the tart noir remit: maybe comedic, maybe violent, maybe sexual, definitely new-woman, neo-feminist, strong, smart and sharp. With not a dippy heroine walking into a dark cellar in sight. Not a lot of brave bloke heroes saving the day on the final page either.» Digo "tenta" porque as fragilidades desta proposta não estão no conteúdo ou na forma mas no modo como se articulam as fragilidades de um grupo amador e o poder dos objectos que manipulam.
Com uma energia e uma entrega alucinantes, TARTNOIR é, contudo, atropelado pela ingenuidade de alguns dos intérpretes. Mesmo que se perceba que lhes falta a experiência e a vontade de fazer seja maior que a forma de o fazer. TARTNOIR é, por isso, um espectáculo que em vez de ingénuo (ninguém o pode ser com um texto deste) é crente. São notórias as dificuldades de fazer aguentar a força do texto e das suas implicações. Não se pode dizer que não o consigam. Mas não chega. O anacronismo é demasiado óbvio. O exemplo mais forte reside nos apontamentos cómicos que acentuam essas fragilidades (perfeitamente compreensíveis, obviamente) das interpretações em vez de ajudarem ao equilíbrio da estimulante estrutura dramatúrgica/encenação.
Composto de 4 histórias e um epílogo (ou o que no final se revela a possibilidade de ser uma só história), TARTNOIR apresenta-se como um exercício de experimentação em torno do poder do feminino. Ainda que, por vezes, essa demonstração apareça com os mesmos contornos/clichés a que já nos habituámos. Culpa, crê-se, não da companhia, mas do próprio texto. As protagonistas das histórias são estereótipos femininos (a advogada devenu lésbica por causa de uma cliente sedutora, a interesseira/distraída/puta, a louca/demente passional, a velha/mal-amada, a polícia que se passa por forte mas leva o trabalho para casa) que, a certa altura, parecem responder a uma definição surgida no espectáculo: «vacas gordas que não conseguiram arranjar homem». É através das suas dificuldades (contadas em flasback à agente da polícia) que vemos o desenrolar de um trabalho sobre o estereótipo, por vezes bem trabalhado (o cruzamento de sequências), outras vezes nem tanto (cenas em formato de telejornal e entradas abusivas de figurantes). Há uma certa confusão entre o anedótico e o absurdo. E isso, num espectáculo que sendo frágil, se apresenta perante uma plateia à partida ganha, só tende a correr a desfavor para os participantes.
Não estamos assim tão distantes do universo de Patricia Highsmith, pleno de non-sense e misantropia. Há até um certo desprezo pelo futuro. O que importa é a remoção imediata do problema. E é nessa rede de referências (pessoais, culturais, sociais) que TARTNOIR aposta. Há uma tentativa de trabalhar o "boneco" de forma a apresentá-lo o mais abrangente possível. Talvez possa parecer pura especulação (num grupo de teatro amador, Hipócritas dixit, a semiótica interessa pouco), mas o facto das assassinas usarem sapatos vermelhos não me parece a despropósito. Poderia até ser uma forma de exposição do ciclo natural da mulher e de relação com o Diabo.
Esta variação/revisitação do poder no feminino está longe de acrescentar algo de estimulante à eterna e irresolúvel questão de conflicto homem/mulher. Contudo, a forma inteligente em que se contruiu a adaptação associada à generosidade que se encontra em grupos descomprometidos com os códigos rígidos e profissionais do teatro, apresenta TARTNOIR como um passo à frente nas, em muitos casos, enfadonhas e repetitivas apostas dos grupos amadores/académicos e afins...
Não tendo prometido génio, TARTNOIR é um divertimento joco-sério. E, sobretudo, honesto. Mesmo que as personagens mintam com quantos dentes têm.
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