quarta-feira, outubro 29, 2003

Água de sombra I

Ontem, Natércia Freire completou 83 anos.
Faz parte de uma série de figuras que constituem o nosso imaginário colectivo, mas poucos são os que dela se lembram, ou sequer ouviram falar deste nome. E que grande falha essa. Esquecermo-nos do nosso passado é, em parte, ignorarmos a nossa existência.

Nascida em Benavente, foi convidada, em 1955, pelo então director do Diário de Notícias, Augusto de Castro, para dirigir a página literária do jornal, denominada Artes & Letras. Poetisa reconhecida e premiada, foi regendo diplomaticamente o seu papel à frente da página literária (e não será difícil imaginar as pressões a que estaria sujeita, sobretudo por ser o jornal Diário de Notícias, e o seu director Augusto de Castro, fortemente conotados com o regime em vigor na época) que continuava a sua procura na poesia, sendo impressionante a coerência de temas e imagens no decorrer de toda a sua vida literária, independentemente do que lhe pudesse surgir a nível pessoal.

Só assim se compreende, através de uma forte e consciente separação dos planos públicos e privados, que Natércia Freire procurasse verter para a sua poesia um estado de alma e de procura que era, no fundo, um posicionamento em relação à sua condição de Poeta. “Habitar o mundo, para um Poeta, como afirma Holderlin, é experimentar uma sensação originária que não se resolve num acto como os que a necessidade ou o hábito suscitam, mas que se quer dizer.” (Diário de Notícias, 20 Abril 1971)

E porque “nunca ninguém saberá a razão de se nascer artista. Como nunca se saberá a razão porque é este ou aquele poeta mais ou menos dotado.” (Diário de Notícias, 07 Novembro 1957), Natércia Freire atravessa quase todo o século XX numa espécie de procura de si nesses planos, numa atitude de plena insatisfação, mas, ao mesmo tempo, de reconhecimento pelo que lhe era proposto. Há, portanto, no percurso desta figura um constante apagamento do seu ser potencial (“Ser de pedra por fora/E só por dentro ser”, Liberta em Pedra, 1964), moldando-se e convivendo com as características e os mecanismos do seu tempo.

“Este barómetro de atitudes quer simplesmente significar que, procurando, por um lado, os homens agrupar-se em escolas literárias, em partidos políticos, em ondas publicitárias, reagem, fundamente, à promiscuidade dos universos que inconscientemente gostavam de salvaguardar para as elites... Um dia todos serão elites... Sem necessidade de doutrinadores pensando pelas suas próprias cabeças, elásticos e perceptivos.”( Diário de Notícias, 22 Abril 1971)

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