sábado, setembro 13, 2003

A voz de Gould

Um dia descobri que se conseguia ouvir a voz do Glenn Gould atrás das notas das Variações Goldberg. Comecei a achar que aquilo de ouvir o Glenn Gould não devia ser bem assim. Talvez eu imaginasse. Sim, havia ali uns ruídos, mas talvez devessem ser riscos no cd. Mas mais tarde, muito tempo depois, encontrei no Jornal de Notícias uma breve nota acerca do assunto. Dizia então Rui Branco, o autor da crítica, que “o pianista alterava as composições dos grandes mestres se não gostava da sua forma. Nem Bach escapou”.
É delicioso ouvi-lo cantarolar a peça ao longo do disco” (JN, 28/06/03). Façam a experiência. Gravação Sony Classical, 1981 Digital. Está incluída na colecção Glenn Gould, as de capas brancas e fotografias angustiadas. Na Ária não vão ouvir nada. É só depois que tudo começa. Logo na 1ª variação, aí pelos 0’ 45”, ouve-se um hum grave. E depois segue. O pior é a variação 11 em que parece que ele está a gritar. Na primeira vez que me apercebi destes sons, assustei-me. Vão crescendo até chegarem a suplantar a própria interpretação. Julguei que alguém me estava a falar ao ouvido.
Deliciado pela ideia, investiguei mais a fundo o assunto e encontrei um artigo da autoria de Rhona Bergman (The Idea of Gould,1996) onde se afirma, a dada altura, que “not only did Gould sing, loudly, along with his music (something his mother had taught him to do at a very young age) and conduct himself with whichever hand was not in use at the piano, but the upper portion of his body swayed - vigorously in a circular motion - while he was seated on a little bridge chair with sawed off legs that his father had altered for him.” Daí os críticos serem tão ferozes com as suas prestações ao vivo, ainda que os concertos esgotassem plateias um pouco por todo o mundo.
Ouvir a voz de Glenn Gould enquanto toca é tão mais precioso quanto a sensação de poder estar a tocar só para nós. O silêncio tem que invadir o espaço e as notas, aí sim, podem pousar e permanecer, enquanto nos deixamos levar pela melodia de Bach. Se há surpresa maior no facto de se poder ouvir a voz de Glenn Gould, essa deriva do desconhecimento do prazer que a música clássica nos pode dar. E só os grandes o conseguem fazer.

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