excerto do texto Momentos de transição publicado no programa do espectáculo Programa da Primavera, da Companhia Nacional de Bailado em cartaz até 24 Março no Teatro Camões, em Lisboa.
Numa crua análise à figura e ao percurso de William Forsythe, as autoras de La Danse au XXe Siècle [1], Isabelle Ginot e Marcelle Michel, apresentam-no como “o símbolo mais marcante de integração de uma certa modernidade no mundo clássico”. Mas não deixam de referir “que atrás das suas lentes de ferro, ele mantém um olhar frio sobre uma época de crise e decadência. Pensando-o em relação a Merce Cunningham, que persegue como que sob hipnose uma aventura com o movimento, Forsythe não tem nada de revolucionário. É sobretudo um divulgador utilizando todos os estilos, todos os procedimentos já utilizados por outros coreógrafos para descrever o estado do fim de século”.
Não nos podemos esquecer que Forsythe é contemporâneo de uma corrente artística que teve como equivalentes nas artes plásticas um Andy Warhol, na música um David Bowie e no cinema um Jean-Luc Godard. Ou seja, a reformulação como resposta ao contexto é quase genética. Há uma consciência situacional que o força a este jogo de reciclagem. E Forsythe nunca escondeu a ambição de dar à sua assinatura uma ambiguidade que lhe permitisse a reformulação estética, de forma e conteúdo, consoante os ventos soprassem. O seu percurso, de um pós-neo-clássico à manipulação das novas tecnologias e da vídeo-dança levaram a que se questionasse se era uma fraude ou o grande génio do século XX.
A dúvida permaneceu sempre e assombra o legado deste coreógrafo norte-americano, essencial para compreender a profunda crise que atravessou (e atravessa) a dança nos Estados Unidos depois de George Balanchine, Merce Cunningham e do Judson Dance Theater Group. Mas sobretudo após o advento da dança contemporânea ter deslocado para a Europa, e em particular para o eixo França-Alemanha, o epicentro das reformulações coreográficas. Forsythe inscreveu o seu nome na dança do último quartel do século XX através de um percurso onde reciclou os códigos, sabendo sempre da falibilidade do que fazia. É por isso que mais facilmente se contextualiza o seu trabalho no panorama europeu que no americano – isso mesmo provam as sucessivas encomendas e, desde 1984, a direcção do Ballet de Frankfurt, na Alemanha.
Ele diz: “Eu não sou mais herdeiro de Balanchine que ele era de Petipa. (...) Vivo no tempo da bomba atómica, da poluição e da SIDA, na época do stress, da violência e dos computadores… Sou um coreógrafo de hoje. Trabalho com o vocabulário clássico porque é o meu e me apercebi que na sua desestruturação retiramos as partes estranhas até aqui ocultadas pelo ballet. Considero o meu trabalho como uma actividade de reposicionamento”[2].
The Vertiginous Thrill of Exactitude é disso exemplo. Na peça de 1996 recordamos a resistente organicidade e a precisão suíça de um Concerto Barroco, de Balanchine (1941), mas também a necessária desmontagem contemporânea que recusa a narrativa. Mas sobretudo evita a cedência à dança moderna, vistosa e fátua. Existe, num espaço e num tempo particulares, o do momento da apresentação, como se um hiato temporal extremo ocupasse o palco. É uma elegantemente anacrónica e emocionada peça onde Forsythe leva mais longe a ideia de uma coreografia que vive de cruzamentos referenciais. Ao imprimir, apenas através da música, uma organização dos intérpretes, joga a partir de dados identificáveis regenerando-os.
Não estamos já, e apenas, no diálogo coreografia-música, no que isto pressupõe de cedências mútuas (naturalmente com a subjugação da primeira à segunda). Há um outro elemento-chave: o intérprete, agora humanizado. Forsythe explora o esforço físico (“bailarinos-atletas” chamaram certa vez aos seus intérpretes), mas integra-o na estrutura cénica. É ele o centro desta peça, e não apenas o movimento. A prova disso está na apropriação especial do último andamento da 9ª Sinfonia de Schubert. Criando de forma extraordinária um jogo coreográfico de solos, trios e duetos, ora sincopados ora sincronizados, provoca um jogo de xadrez entre os bailarinos que resulta numa estrutura cumulativa, cada vez mais vertiginosa, quase transcendente. Os intérpretes perdem-se numa espiral de movimentos intensa, noção reforçada pela necessária exactidão com que a devem dançar. Ficamos com a sensação de que poderiam continuar por horas já que a peça não tem necessariamente um princípio, meio e fim. E num tempo de indefinições como este em que vivemos não poderia haver melhor representação.
Legenda da foto: interpretação pelo Kirov Ballet/autoria: John Ross
No You tube encontram-se excertos desta peça.
2 comentários:
vais curtir
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muito boas informações a respeito de William forsythe.
/eu gostaria de saber mais sobre ele...vc poderia por favor me indicar bibliografias e/ou links para saber mais sobre ele?? ficaria muito grato
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