sexta-feira, março 09, 2007

Crítica de dança: Matrioska, de Tiago Guedes


coreografia de Tiago Guedes
Centro Cultural de Belém, Lisboa - até domingo, 11

Pensar que as peças para crianças devem partir de uma didáctica é não só redutor mas impeditivo de uma verdadeira formação intelectual. Coloca-se uma importante questão: que crianças estaremos a formar? Almada Negreiros dizia que “uma criança é apenas um adulto de olhos abertos”. Sugerir em vez de explicar pode ser a fórmula indicada, mesmo que obrigue à existência de zonas cinzentas de compreensão. A criação em dança é ainda mais particular já que nela se impõe a tomada de consciência, pela criança, de que tem um corpo. E a coreografia trabalha a compreensão de um universo por vezes apenas sensorial e abstracto.

É neste campo da descoberta que se enquadra Matrioska, primeira peça infantil de Tiago Guedes, cujo trabalho geral parte de questões e hipóteses sobre o tempo coreográfico e a procura de um lugar para o corpo. Na peça anterior, Trio (2005), explorava a noção e a presença do corpo no espaço, estendendo o gesto numa vagarosidade sedutora e hipnotizante. A instalação de uma imagem (mas também de um conceito) está presente em Matrioska, onde se ampliam dois dos eixos fundamentais do seu percurso – a relação com o tempo e o diálogo com as artes plásticas.

No que respeita ao tempo faz demorar as sequências num jogo de ilusões que vem de Um Solo (2002) e Materiais Diversos (2003), feitas para adultos mas entusiasmadamente recebidas por crianças. Um gesto arriscado porque dirigido a uma faixa etária, 6 a 10 anos, cujo grau de exigência começa a ser contaminado pela percepção que têm da velocidade que os rodeia. No diálogo com as artes plásticas, substituindo o uso de objectos casuísticos (em Um Solo biográficos, em Materiais Diversos recicláveis) por um tempo de revelações, sempre sugestivas, mesmo se desenhando uma ténue narrativa.

Nenhuma das imagens criadas pelos dois intérpretes, Inês Jacques e Pietro Romani, é mais real ou fixa que as utilizadas nas peças anteriores onde o gesto dependia de uma rede de projecções activadas pelo espectador. Aqui essa paragem no tempo interage com as sugestões feitas pelo coreógrafo que conduz a criança por diversas camadas, como a boneca russa que dá nome à peça. A voz da menina transforma-se em uivo, o seu corpo gera uma sombra que a domina, há estranhas mutações atrás de uma tela, há muitas zonas de sombra e um clima de suspense especulativo.

Matrioska é um exercício de inspirada desenvoltura em torno da fantasia, não apenas porque a menina não sabe que “coisa” é aquela que a persegue, mas também porque ela é muito menos inocente do que se apresenta. Irónica fábula negra, para a qual contribui uma imaginativa e multifacetada banda sonora de Sérgio Cruz, é absolutamente extraordinário verificar que a coerência do discurso de um dos mais relevantes nomes da nova geração da dança soube abrir o seu universo aos mais novos, cativando-os através de uma cumplicidade que só as histórias simples proporcionam. Mas mais revelador ainda é o modo como não cede nessa pesquisa, antes transformando o gesto num espaço de desafios e expectativas.






[texto publicado no jornal Público, 05 Março 2007. Fotografia: Dimitri Wazamski]

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