quarta-feira, dezembro 22, 2004

6ª Mostra de Teatro Jovem de Lisboa - MostraTE

observações finais

Depois de ter apresentado as sinopses e análises dos espectáculos, bem como os breves questionários feitos à organização e participantes, O Melhor Anjo, dá a conhecer, hoje, as observações finais acerca da 6ª MostraTe*, que decorreu entre 18 e 29 de Novembro, no Teatro Taborda, em Lisboa.

Pensar a 6ª Mostra TE

Este análise à 6ª Mostra TE assenta em dois pontos: uma contextualização dos espectáculos dentro da ideia de uma mostra, procurando perceber a relação que se estabelece com o público e um questionar da pertinência de um evento como este.

A Mostra de Teatro Jovem de Lisboa é, afinal, o quê? Qual a intenção da Câmara Municipal de Lisboa, através do Pelouro da Juventude, ao condensar em duas semanas espectáculos com tão diferentes pontos de partida e objectivos, públicos diversos e várias estratégias de aproveitamento da Mostra?

Podemos perguntar-nos da razão de ser da Mostra TE. E devemos, já que ao considerarmos o conjunto das propostas, dificilmente teremos uma só resposta. O que se por um lado pode estar relacionado com a oferta cultural em Lisboa, indica também uma indefinição quanto aos objectivos artísticos do evento. Aspectos que se irão reflectir na apresentação de propostas por parte dos criadores/estruturas, na recepção do público, no acompanhamento da comunicação social.

Só assim se justifica a apresentação conjunta de espectáculos destinados a um público infanto-juvenil (Querosene), propostas de companhias não profissionais (TartNoir), exercícios de carácter educativo e psicológico (Mitos do Universo), primeiras criações (Noivas da Pérsia), espectáculos com um reduzido número de apresentações ou em fase de estreia (Pour Homme, Ophelia), peças que estiveram recentemente em cena em espaços próprios das estruturas ou noutros teatros (Antes dos Lagartos, Violeta, puta de guerra) ou ainda espectáculos que já contam com mais de um ano de data de estreia (Private Lives). Anteriormente deu-se conta das análises aos espectáculos, mas convêm destacar que cinco destas produções correspondem, efectivamente, ao teatro que se faz em Lisboa: espectáculos que reflectem uma nova relação com o teatro, do ponto de vista da criação artística a funcionar como elemento questionador do papel da arte e da sociedade no teatro (Pour Homme, Private Lives, Ophelia) e propostas assentes no esquema formal de criação teatral: forte predominância dramatúrgica, definição convencional dos lugares de cada uma das partes na estrutura teatral (Antes dos Lagartos, Violeta, puta de guerra).

Podemos considerar que a resposta a este "caldeirão" se prende com aquilo que as próprias estruturas/criadores querem apresentar e corresponde à vontade da CML em proporcionar condições de apresentação. E se assim for, implica apreender que o evento perde toda e qualquer capacidade de promoção e implantação no tecido cultural da cidade. Deverá assumir, ainda, a sua condição de máquina financeira, sobrepondo esta condição aos critérios de qualidade artística e objectivos programáticos das propostas. Se quiser apostar num evento com essas características, a CML insistirá numa ideia de "montra" que anula toda e qualquer capacidade de relação entre quem faz e quem recebe, encerrando o evento em si mesmo.

Atendendo à incapacidade da CML de responder aos pedidos de apoio que os criadores/estruturas vão fazendo ao longo do ano (seja por dificuldade financeira ou estratégia programática), à inexistência de uma política de ocupação de espaços municipais por projectos com menos capacidade de angariação de apoios mecenáticos/institucionais ou de carácter experimental, à redução cada vez mais visível de apresentação de espectáculos de artes performativas na Semana da Juventude e nas Festas da Cidade e ao facto de Lisboa ser das poucas cidades europeias de grande ou média dimensão que não tem um festival de teatro, o Pelouro da Juventude da CML teria com a Mostra TE a oportunidade de desenvolver um evento com características que permitisse integrar-se na vida cultural da cidade.

Ao observarmos a plateia que assistiu aos espectáculos, podemos concluir que mais de 75% é composta por um público-fiel aos criadores/estruturas. Sendo, no entanto, de notar que este público-fiel coloca os espectáculos numa condição de apresentação fechada, já que não permite compreender o alcance das apresentações dos espectáculos, seja de forma isolada ou contextualizada no programa do "festival". Um dos aspectos a considerar tem a ver com a distribuição de 50 convites por produção, o que imediatamente permite aos criadores uma selecção do público que os vai assistir. Ainda que as estruturas possam fazer o esforço de distribuir esses convites por pessoas que não tenham tido oportunidade de ver o espectáculo, por afinidades artísticas, programadores, críticos, etc., insiste-se na ideia de condicionar a apresentação a uma finitude, em tudo prejudicial à criação artística. E de que o teatro para ter público precisa ser oferecido, o que é tanto uma falácia, quanto um impedimento para a percepção do público real destes espectáculos e deste evento. O objectivo de qualquer estrutura não é ter a sala cheia com um público que pouco contribua para o processo criativo. O objectivo de qualquer organização não é "comprar" os espectadores.

Associada a esta ideia de apresentação está ainda a ausência de uma contextualização crítica dos espectáculos, abandonando os criadores e os espectadores a uma análise meramente circunstancial. Novamente a questão da recepção dos espectáculos e da selecção dos mesmos. Que procurou a CML reflectir com esta escolha? Fará sentido uma mostra de criações da nova geração sem um suporte que as contextualize e permita a identificação dos aspectos inovadores das mesmas? Que diálogos se podem estabelecer entre os espectáculos, atendendo a que correspondem a uma ideia do que a CML considera o mais criativo e interessante que se fez no último ano? Note-se que não se trata aqui de questionar se a CML deve ser programadora e criar uma espécie de pódio para os espectáculos, mas antes partir destes para uma discussão mais vasta e tão necessária. Os espectáculos nem sempre falam por si e o diálogo entre criadores e espectadores deve ser estimulado, com o prejuízo de não se perceber o que atrai uns a outros.

Em resumo, não se sentiu uma renovação do público nem se percebeu o efeito que o mesmo teve na recepção dos projectos e na fixação do evento no panorama teatral da cidade. Desperdiça-se uma oportunidade de se a aproximar a CML dos criadores/estruturas e estes e do público.

O exemplo do espectáculo apresentado pelo Grupo de Teatro Nós, Mitos do Universo, anula toda e qualquer capacidade de consideração da Mostra TE como um modelo credível do melhor que se apresentou em Lisboa nos últimos tempos. Não faz sentido, nem sob o ponto de vista da caridade social, a confrontação deste exercício com os outros espectáculos. É um anacronismo que não beneficia nenhuma das partes. Basta aliás observar que a plateia era constituída por familiares dos participantes. Na verdade, o espectáculo Mitos do Universo não chegava a ser um espectáculo, mas antes um exercício com objectivos terapêuticos que, provavelmente, eram anulados no acto de serem apresentados a uma plateia composta por um público particular. Convêm perguntar se as expectativas criadas aos participantes de uma apresentação ao público não saem goradas ao serem confrontados com uma plateia familiar.

E convêm, ainda, saber se a aposta neste tipo de propostas pretende criar condições para a fomentação de outras mais credíveis que a apresentada. Nomeadamente a exibição de propostas que passem para lá de uma demonstração da utilização do teatro como ferramenta médica. Dificilmente se pode considerar justo uma apresentação em condições iguais de um grupo terapêutico e de companhias/criadores que se vão apresentando pela cidade ao longo do ano. Por desrespeito para com o trabalho valoroso que o Grupo de Teatro Nós faz e para com o trabalho de dezenas de criadores que consideram, apesar de tudo, a Mostra TE, como uma oportunidade de terem visibilidade.

Isto encerra um conjunto de questões que se prendem com os critérios de selecção dos espectáculos, a coordenação dos mesmos quanto aos dias de apresentação ou a contextualização para um público que se quer aumentado. Furtarem-se a uma reflexão sobre o papel que podem desempenhar é recusarem a relevância de um evento como a Mostra TE.

A recepção do público está, invariavelmente, relacionada com a forma como este é trabalhado. E talvez fosse necessário repensar a estratégia de promoção, atendendo a que a Mostra TE é o único evento que concentra num determinado espaço de tempo um conjunto de criações, que tanto podem servir de rampa de lançamento para estruturas (como foi o caso do Teatro Praga que começou por se apresentar em edições anteriores) ou permitir a exibição de projectos de jovens criadores sem uma estrutura que os sustente (André Murraças e Rogério Nuno Costa/Marina Nabais, por exemplo). Criadores esses que fazem parte de uma segunda geração apostada em romper com certas fórmulas teatrais e recuperar um lugar para as artes performativas no quotidiano cultural. E o facto de partir da iniciativa de uma instituição pública não pode ser apresentada como apenas um incentivo à arte teatral. Os incentivos implicam o assumir de certas realidades e a definição de modelos. Caso contrário, o evento servirá apenas como uma bolsa de ar para os orçamentos deficitários das estruturas/projectos.

Nesse sentido, seria importante reflectir o destaque dado ao evento pela comunicação social. Com o pouco espaço concedido à cultura, menos será aquele para eventos que surjam sem uma lógica aparente. A variedade anacrónica de propostas corre menos a favor do evento do que seria de supor. Antes o descredibiliza. E se o objectivo for - como, aparentemente é tendo em conta as consultas feitas quer à organização quer aos criadores/estruturas -, o da promoção das prosduções e de quem as faz, podemos considerar que o formato não resulta. Durante as duas semanas de apresentação apenas uma reportagem na SIC Notícias deu conta do evento, e somente no dia de abertura. Os jornais ignoraram a Mostra TE, limitando-se a indicar os espectáculos nas agendas culturais. Não se ouviram entrevistas na rádio ou reportagens sobre as apresentações. Não se teve conhecimento da organização de passatempos com oferta de bilhetes. As informações constantes no site da CML perdiam-se entre outros assuntos. Os cartazes (exceptuando os colocados nas carruagens do metropolitano) e o restante material promocional não eram encontrados com facilidade. De uma maneira geral, o evento passou despercebido. E atendendo ao empenho de todas as partes, é de lamentar.

Convêm, por isso, fazer uma reflexão profunda, sobre este e outros tópicos, se o objectivo for o de imprimir uma marca reconhecível na/da Mostra TE. Da parte dos criadores sente-se a necessidade da existência de eventos que permitam ultrapassar as limitações inerentes às estreias, e que possibilitem o contacto com programadores, críticos, outros criadores, público; o público precisa de um espaço onde possa ver concentradas produções que possam servir de montra (no bom sentido da palavra) do teatro que vai fazendo; as instituições necessitam de procurar uma forma de interacção com o tecido cultural, proporcionando assim uma rede de colaborações que o faça evoluir.

A acontecer uma nova edição da Mostra TE, convêm perguntar primeiro se o que está a fazer é útil. Mas útil no sentido lato do termo. E se é suficiente. Provavelmente vão perceber que podiam fazer muito mais. E que as respostas já lá estavam.



*Como foi explicado não foi possível assistir à apresentação do espectáculo de Lígia e Andresa Soares pelo que não se dará conta do mesmo nesta análise.

Todas as sinopses, análises e questionários podem ser consultados aqui ou na coluna da direita.

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