quarta-feira, dezembro 01, 2004

Amores perfeitos só nos canteiros

Análise ao espectáculo Violeta, puta de guerra
Teatro Focus
6ª Mostra de teatro jovem de Lisboa
Teatro Taborda
28 Novembro 2004



Para um país que gosta de evocar a sua história, impressiona a má-relação que a dramaturgia portuguesa tem com África e a guerra colonial. São poucos os exemplos de peças que versam sobre o tema e menos ainda aqueles que se colocam de outro ponto de vista que não o dos soldados.

Até ao fim da 2ª Guerra Mundial, África não era um problema na dramaturgia portuguesa. Antes aparecia num sentido de "horizonte de redenção". São vários os exemplos de contos, novelas ou romances que têm lugar em África e tratam da sua força e do poder do colonizador. Provavelmente devido à censura não são muitos os exemplos do insucesso que essa experiência também provocava. A partir dos anos 60, há uma mudança de registo de realidades e a guerra colonial começa a produzir alguns textos menos optimistas. Sobretudo desde então foram dados a publicar (ainda assim num número ridículo) peças de temática africana, onde o efeito da guerra se faz sentir. É o caso de, por exemplo, Um jeep em segunda mão (Fernando Dacosta, 1978), Pátrias (Francisco Nicholson, 1988), África (Isabel Medina, 1990), O sentido da epopeia (Mário de Carvalho, 1992). Às vezes neva em Abril (João Santos Lopes, 1998) ou Fumos de glória (António Faria, 1998).

Mas o ponto de vista de Fernando Sousa é outro e, sobretudo, polémico, no que isso representa de deslocação do centro de acção para outra vítima. Violeta, puta de guerra trata da história das centenas de mulheres prostitutas que acompanharam os soldados nas colónias e, com o fim da guerra, foram deixadas quer por eles, que regressavam à metrópole e às famílias, quer pelo Estado que afirmava «não haver espaço para maus costumes», agora que a ordem da revolução imperava. Essas mulheres, mães, irmãs, amantes dos soldados deslocados, foram, então, levadas para campos de reeducação de forma a se poderem integrar num sistema convencional homem/mulher, em que os valores morais necessitavam ser reequacionados.

O texto seco, sufocante e amargurado de Fernando Sousa convoca, então, todo um universo de trocas aparentes e jogos de sedução em nome da necessidade. Mais do que um jogo de dependências, demonstra uma desequilibrada relação de forças, cujo maior sentido de dignidade está, afinal, nessas mulheres-colo, conscientes do seu lugar e do seu poder. Mesmo que tenham terminado sozinhas.

Violeta, puta de guerra, mais do que teatro-documento é um exercício de memória que procura resgatar, sem condescendências, o devido lugar a todos os peões de uma guerra sanguinária e responsável pelo desmembrar de uma sociedade. A mesma que se sente incapaz de lidar com os fantasmas da guerra, e por isso insiste em não os expurgar.

O facto de Violeta começar como um estereótipo (violada pelo pai, mão prostituta, mulher errante), não a impede de dar a volta sobre si mesma e se apresentar depois como uma outcast, consciente do seu papel. Violeta, que ficou para trás "para fazer mais algum", recusa transformar-se em novo estereótipo e, mesmo que não o sinta, assume a sua individualidade. Personagem profundamente solitária, que mais do que procurar o amor («os amores perfeitos só nos canteiros») procura a integração na vida daqueles homens (até mais do que a aceitação, porque essa é implícita). «Tudo o que me deixaram foram palavras. Palavras bonitas. Mas o que valem agora?».

O trabalho de Joana Fartaria, ainda que acuse um certo peso expressionista (marcadamente imposto por uma encenação austera e um texto que, por vezes, resvala para um plano mais literário), assume essa posição de resignação versus revolta. E é nesse constante desequilibrio que a actriz carrega o espectáculo num crescendo emocional angustiante. Sobretudo pela forma perdida e desorientada com que ocupa o espaço vazio. Quase numa urgência de expressar com o corpo o que com as palavras parece piedade. Ainda que por vezes se sentisse a necessidade de deixar cair a máscara e se procurasse adoptar uma posição menos defensiva, entende-se que a actriz, afinal, procura representar um duplo papel. Violeta também parece fingir que nada a atormenta.

A imagem perfeita de Joana Fartaria obriga ainda a ver Violeta num plano ausente de dor, sujidade ou violência. Num plano humano, onde não há quem utilize o outro e depois o descarte. Antes a torna mais próxima de uma virgem sacrificial, sobretudo a partir do momento em veste um vestido branco crú de costas para o público. Essa imagem que imediatamente traz à memória Renée Falconetti como Joana d'Arc remete o público a uma posição desconfortável de desrespeitador do espaço-último de privacidade e pudor da prostituta. Não lhes é permitida a beleza do corpo, o desejo, o toque, a luz de África inocente. Trata-se de uma troca de carne. Esta transformação numa quase-virgem reposiciona o espectáculo num registo confessional perante uma audiência de fantasmas-carrascos. Esses que a(s) abandonaram no caminho para casa. «Que fiz eu?», pergunta ela. «Recebi sempre o que dei. Pagaram-me sempre». E agora?

O espectáculo é construído de forma retrospectiva (não se percebe aliás se Violeta é uma evocação imaginária dos dois soldados que introduzem o espectáculo ou se são eles os convocados pela sua memória), quase como se se permitisse a um movimento de paronâmica cinematográfica muda e silenciosa sobre imagens daquelas mulheres nas ruas das ex-colónias, com os céus carregados aviões cheios de soldados completos de renovada esperança. Esta posição permite duas leituras: podemos considerar que o lamento de Violeta é um despir resignado (quase um desabafo e encolher de ombros) de uma máscara antes da manhã seguinte onde tudo recomeça; e ainda como se Violeta quisesse construir uma casinha de bonecas, como a que não teve na infância, e onde a história a deixasse como vencedora. Esta estória perfeita, amarga mas perfeita, permitir-lhe-ia sentir-se menos abandonada nas suas crenças. A ela que os recebeu «aceites nos seus vazios».

Espectáculo sombrio (onde o jogo de luzes dá à luz de África contornos dantescos) e inconformado, Violeta, puta de guerra transporta-nos para um confronto de vidas errantes em nome de qualquer coisa que se designou por sobrevivência. É, antes de mais, um brilhante retrato de desespero e solidão que não deixa o espectador confortado. Pelo contrário. Provoca uma sensação de impotência que dificilmente acaba com o fecho da cortina.

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