terça-feira, novembro 30, 2004

A noiva de luto

análise ao espectáculo Ophelia
Marina Nabais e Rogério Nuno Costa
6ª Mostra de Teatro Jovem de Lisboa
Teatro Taborda
25 Novembro 2004



Ophelia é um espectáculo-dúvida. E a dúvida permanente está no equilíbrio entre o dito e o não dito; entre o presente e o ausente. Há um momento em que a famosa imagem de John Everett Millais assume a real dimensão do que se procura testar com Ophelia. Marina Nabais deita-se no palco para se cobrir com cartas e livros, como se dissesse que mais do que morrer em estado de flor, morre (nasce?/assume?) em personagem literária. Ophelia é um espectáculo sobre a alteridade. Ser-se o outro. E em nome desse outro procurar o "eu".

O espectáculo propõe uma materialização plástica do cruzamento da personagem Ophelia, da tragédia shakesperiana Hamlet com a amante de Fernando Pessoa, figura tão perturbada quanto a anterior e, no final, quase uma mutação da ficção. Fá-lo através de uma pesquisa retrospectiva sobre a condição feminina, sem tornar o espectáculo num panfleto feminista. Importa menos o papel da mulher, mas o que ela faz com ele. E, nitidamente, estas decidiram anulá-lo. Por isso, importa menos dar conta das soluções para a resolução dos dilemas das protagonistas, mas antes apresentar (-lhes/-se) o enredado fio em que se envolveram.

Quando estreou em 2002, o facto de se ter apresentado nas piscinas do Ateneu Comercial de Lisboa, permitiria, supõe-se, uma mais óbvia relação com a água e a ideia de afogamento eminente, numa resposta directa ao desequilíbrio emocional a que as personagens se permitem. Na delicada ocupação do espaço do Teatro Taborda, a leitura torna-se mais difícil e abstracta. Preenchendo a boca de cena com copos de plástico cheios de água, aposta-se num exercício de suspensão e fragilidade, que não só torna mais estimulante a proposta como a eleva a um patamar de alienação e distância cénica, tão próximo do que seria o estado de espírito das figuras convocadas.

Porque Ophelia é um espectáculo feito para o tempo de Marina Nabais, esta torna-se, assim, uma personagem que, no final, procurará a libertação do criador (e, já agora, afirmar, que se trata de uma co-criação), numa curiosa transposição do palco para a vida, como se Ophelia quisesse ser teatro-dentro do teatro-dentro do teatro. Mesmo que isso implique o risco de implosão do conceito. Rogério Nuno Costa (figura da qual só se sabe a voz) age como o presente/ausente, tal como Fernando Pessoa e Hamlet. Não tanto no sentido sexual ou castrador do termo, mas porque, neste caso específico, não há uma mulher sem um homem. E nesta relação de forças, é notório que é ele que vive para ela e não o contrário.

Talvez assim se entenda melhor a sequência final de Ophelia. Os autores sentados a propor a desconstrução do espectáculo não fazem mais que se preparar para a chegada (a definição?) dessa terceira Ofélia. Essa que redimirá as outras duas do amor que as prendera. Aquela que, no fundo, se impôs ao longo do espectáculo. A que nunca existiu. Porque tomou uma decisão em nome individual. Será por isso que esta terceira Ofélia procura discutir a individualidade feminina; o libertar dos estereótipos e conceitos, espartilhos e sequestros emocionais. Resgatará Ophelia do lodo; forçará Ofélia Queiroz a confrontar Fernando Pessoa. Não está ausente de um certo simbolismo religioso. Afinal, falta pouco para que estas duas Ofélias se pareçam com Santa Teresa d'Ávila.

Nessa falsa discussão, Marina Nabais insistirá na ideia de que as duas Ofélias são o que quiseram ser. E dificilmente poderiam ter sido outra coisa. Não porque sejam criações masculinas (ou existam através de um homem), mas porque conceberam o amor como um sentimento unilateral e desequilibrado. Um sentimento em que o outro é o estímulo. Não o fim. Entraram, por isso, numa espiral de masoquismo ingénuo.

Espectáculo de partilha e cumplicidade, esta primeira colaboração oficial (1) de Marina Nabais e Rogério Nuno Costa procura provocar a decomposição mais do que a desconstrucção dos estados femininos para compreender as suas (as das Ofélias) falhas. Exemplo disso é a utilização ad nauseum dos mesmos excertos das cartas de Ofélia Queiroz para Fernando Pessoa ou das deixas da personagem Ophelia, como se a sua repetição acentuasse a ideia de que as respostas estão dentro da mensagem.



É por isso curioso verificar que ao longo do espectáculo são várias as oportunidades para Ofélia (qualquer uma) se libertar. Mais não seja para afirmar a sua existência. E, no entanto, os criadores propõem antes uma mutilação das personagens através da não pronunciação do seu nome. Ou são chamadas pela voz ausente, ou o nome aparece transfigurado em diminutivo, ou é suprimido nas cartas que são lidas ou ainda uma chama a outra. Mas são raras (se calhar nenhumas) as vezes em que alguém diz: Eu sou Ofélia. Somente num momento, a actriz grita: «Eu quero ser Ofélia"». Se-la-á, mais tarde. Se o souber ser. E é por isso que Ophelia é um quadro mudo de uma ideia de representação, já que nem sequer as que o podiam ser, o souberam ser.

Tanto Ophelia como Ofélia Queiroz existem na presença/ausência de um ente masculino do qual não se conseguem/não querem libertar. A actriz fá-lo. Rogério Nuno Costa (o homem, o leitor, o espectador) perde. Seja porque não assume uma presença material ou porque parece querer recusar a liberdade à personagem que controla. Uma espécie de jogo de marionetas, em que não se sabe quem controla quem.

Ophelia é um espectáculo circular que se reinventa e busca novas hipóteses para a resolução das suas dúvidas. À pergunta "como é o movimento", as Ofélias vão respondendo como podem, também elas perdidas numa /forçadas a uma necessidade de afirmação. Não sendo possível perceber como e porque se cruzam (Ophelia deita fora a investigação histórica depois de recolher o que lhe interessa), o campo fica aberto à especulação. E é nessa especulação que resiste o interesse da proposta de Marina Nabais e Rogério Nuno Costa, mesmo que, com o tempo e noutros espectáculo tenham vindo a aperfeiçoar algumas resoluções.



É, ainda assim, um espectáculo dedicado, simbólico, envolvente e bem estruturado, no que isso significa de recusa de entrega ao público um trabalho seguro e fechado. Antes obriga-o a uma reflexão sobre as possibilidades de contaminação da ficção e da realidade, incluindo aqueles que envolvem os processos criativos. Aparentemente amargo e seco, Ophelia depressa se transforma numa proposta de confronto entre o que se pode e não pode fazer, seja em nome do amor ou da arte. Sendo frágil, Ophelia não pode desejar mais que uma lenta e serena descida pelo rio, mesmo que as águas geladas da incompreensão insistam em se impôr.

Nota final: Porque os criadores recusam a ideia de contextualização, remete-se para futuras análises os fascinantes aspectos que tornam Ophelia num balão de ensaio para os espectáculo que se seguiram num estimulante exercício de relação e simbologia.





(1) Os dois criadores desenvolveram esta proposta durante um workshop de teatro que orientaram para o teatro Universitário do Minho e do qual resultou o espectáculo 27 sobre 4.


Outros espectáculos de Marina Nabais e Rogério Nuno Costa analisados neste blog:

Das Padeiras de Aljubarrota
God Knows Whati! - Dá Deus nozes a quem não tem dentes

Outros espectáculos de Rogério Nuno Costa analisados neste blog:

Actor
Pictures at an Exhibition
Saudades do tempo em que se dizia texto
Vou a tua casa - lado a


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