quarta-feira, setembro 12, 2007

Sweet & Tender - a experiência

It’s contemporary dance, stupid!


Todas as histórias têm um início mas esta, porque se quer especial, não tem um mas dois inícios. O primeiro aconteceu em 1992, período que para a dança europeia é de particular significado. As rupturas com aquilo a que se convencionara chamar de novas modernidades tinham possibilitado já uma segunda geração de criadores que começavam agora a agitar as águas da dança. Por iniciativa de Jean-Marc Adolphe nomes como Alain Platel, Meg Stuart, Hahn Rowe, Caterina et Carlotta Sagna, Vera Mantero, Lilia Mestre, Jocelyne Montpetit, Damiano Foa e Laura Simi ou Thierry de Mey passaram um mês em Paris, no Théâtre de la Cité Internationale num projecto a que se deu o nome de SKITe. Cada um deles, a maior parte começando uma carreira internacional e aproveitando a oportunidade para dar largas a colaborações que se prolongariam nos anos seguintes, era responsável pelo convite a mais cinco nomes, não necessariamente da área da dança. E o resultado, intitulado num misto de ingenuidade e de abertura de possibilidades Fragmentos de Experiências, apresentou-se em Paris, Londres e Leuven (Bélgica) criando assim uma plataforma que permitia entender quais os desígnios de uma geração entretanto chamada de contemporânea. Havia uma clara disruptura nas formas e nos modelos de aprendizagem que levavam a que o momento de partilha – o anúncio de um acto de partilha – fosse mais importante. E foi nesse contexto que surgiu a frase-chave para compreender o espírito deste encontro: não proponhas nada que não queiras partilhar.

Escreve Adolphe, em notas de balanço, que “o objectivo era proporcionar uma reunião entre artistas separados por distâncias geográficas, diferenças culturais e muitas vezes uma situação económica precária”. O projecto teve uma segunda edição, dois anos depois, em Lisboa, aproveitando o facto de esta ser, nesse ano, Capital Europeia da Cultura, mas em vez de vinte artistas, e porque a fama tinha ultrapassado o objecto, cerca de trezentas pessoas reuniram-se numa cidade que assistia, surpresa, à consolidação do movimento da Nova Dança Portuguesa mas também, e sobretudo, se queria mostrar cosmopolita, atenta e presente. Clara Andermatt, Jérôme Bel, Olga de Soto, João Fiadeiro, Rachid Ouramdane, Yves Godin, Benoît Lachambre, Christian Rizzo, Nadia Lauro, Wayne MacGregor, Mark Tompkins ou repetentes como Alain Platel, Vera Mantero e Meg Stuart constituíam agora, na sua ampla diversidade, a paleta de possibilidades de uma dança empenhada em questionar que uso dar ao corpo, à relação com o outro no mesmo espaço e enquanto corpo observado (foi em Lisboa que Bel mostrou, em primeira mão, Nom donné par l'auteur – o que dá a caução certa ao espírito deste evento), bem como a consciência de intervenção pública e política. Havia nesta manifestação um certo travo a movimento social transnacional. Mas depois uma pausa, o fim do primeiro início da história por impedimentos vários, medos irracionais e impossibilidade, da parte de potenciais parceiros, para compreender o que estava aqui em causa: “ultrapassar a habitual montra de produções oferecendo aos artistas um tempo para encontros, trocas, pesquisa e experimentação”.

Segundo início, segunda parte da história ou primeira parte da história que agora importa começar a contar do início: 2006, ImPulsTanz, Viena. Ou melhor, o programa DanceWEB no âmbito do Impulstanz. Durante sete semanas vários jovens artistas de outros tantos pontos do globo encontram-se para um intenso programa de formação ad-hoc em dança. E no fim, claro, eternas promessas de futuras partilhas. Mas agora, e porque hoje deixou de haver tempo para se acreditar no futuro ocasional, a promessa quis-se realidade, bem ao jeito de algo delicodoce, tão sweet e tão tender, nome que depressa foi adoptado e cuja concretização muito deve à italiana Valentina Desideri, 24 anos. Foi nessa altura que a história interrompida da geração anterior encontrou a história por fazer da nova geração.

Chamem-lhes tudo menos nova geração

Podemos usar qualquer exemplo que o resultado vai sempre dar ao mesmo: já não há artistas sitiados nem artistas limitados. Tommy Noonan, 24 anos, americano a trabalhar em Freiburg, Alemanha, só porque lhe perguntaram se queria e ele decidiu deixar a instabilidade de Nova Iorque por uma experiência artística mais cúmplice; Tim Darbyshire, 27, australiano que estudou em Angers sem falar palavra de francês e que vacila de cada vez que lhe perguntam se quer mesmo voltar para o outro lado do mundo, Begüm Erciyas, 25, turca que não vai a casa há três anos e está de malas feitas para a Alemanha, Min Kyuong Lee sul-coreana a viver na Nova Zelândia há sete anos e de coração posto na Europa, Monserrat Payró, 32, mexicana, dois filhos e com uma sede de provar que o mundo pode viver de pão e cebolas ou António Pedro Lopes, 26, português, que tem sido intérprete de Fiadeiro e Bel são apenas seis exemplos entre os 32 nomes vindos de Itália, Portugal, México, Áustria, Suiça, Grécia, Bélgica, França, Alemanha, Japão, Coreia do Sul, Eslovénia, Brasil, Irão, Estados Unidos da América, Noruega e Roménia que durante um mês, de 15 de Agosto a 15 de Setembro, se reuniram em St. Erme, no utópico PA-F do coreógrafo e encenador holandês Jan Ritzema para, simplesmente, tomarem o pulso da criação actual numa troca rica de experiências entre coreógrafos, intérpretes, fotógrafos, artistas plásticos, encenadores e críticos (sim, eu fiz parte do grupo e este é, claro, um texto feito por dentro).

E, no entanto, dizer o seu sítio de origem é tão ou mais irrelevante quanto dizer onde se encontram agora. Porque onde se encontram agora pode já ter mudado na semana seguinte. É assim com a nova geração de criadores, por muito difícil que seja aceitar que se faz parte de uma nova geração. O que a caracteriza então?

Desde logo uma facilidade em aceitar que não é da dança quem dançou antes, mas quem quer ser da dança. Não há rituais de passagem obrigatórios, há apenas o acertar de agulhas para um diálogo multidisciplinar onde a dança serve de pretexto para fazer muitas outras coisas. Sobretudo pensar. Pensar que sentido ainda faz falar-se de corpo; pensar de que modo podemos fugir da centralidade proposta/provocada/promovida por esse mesmo corpo; pensar se não são tudo esquemas e artifícios algo pífios para, simplesmente, se apresentar aquilo a que se convencionou chamar performance (e já não espectáculo); pensar e encontrar formas de partilhar e construir territórios de criação comuns onde possa ser visível o contributo individual mas também as dinâmicas de grupo. Mas, e mais importante do que tudo isto, como sobreviver ao paradoxo de querer estar fora do mercado discutindo o problema dentro do próprio mercado?
Citando directamente do manifesto de apresentação “Sweet and Tender Collaborations is first and foremost an idea for cultural production and exchange. It operates on the notion that an individual who can create the conditions for his or her own artistic production can nearly always create the space for an Other as well. It is the idea that the resources within each individual’s sphere can be combined to realize a level of access, mobility and collaboration that would otherwise not be possible, or would be determined by an external authority of producers. Resources in this context come to mean everything from information, to personal artistic values, to funding”.

É um manifesto político, portanto, que está directamente relacionado com as condições de produção e entendimento da profissão de cada um dos envolvidos. Se nos detivermos em pequenos detalhes percebemos que, hoje, estes nomes são absolutos produtos e sintomas do mundo onde vivem: caótico, apressado, multifuncional, veloz, necessariamente eficaz, desprendido, sobrevivente e, estranha mas não surpreendentemente, crente. O que, desde logo, os destaca da maioria, da geração a que dizem não querer pertencer. E porquê?
Sentados em roda, durante três dias de apresentação, um a um foram mostrando ao que vinham. Uns com projectos já definidos que queriam partilhar ma non troppo – queriam sobretudo testar. Outros sem qualquer ideia ou só com a ideia de absorver. Uns desconfiados (como eu, confesso) de grandes encontros. Desconfiados da maleabilidade dos egos. Outros que abriam o seu discurso e a sua prática aos outros, querendo fazer deste encontro, desta comuna, o palco de uma experiência, quem sabe artística – eventualmente – mas sobretudo social e humana. Sim, os sentimentos são sempre nobres no início. E na educação polida de quem deve ouvir antes de reagir começaram a desenhar-se os traços – livres e humanos, pois – que desenhariam a experiência do mês seguinte. Uma experiência que nunca poderia ser vivida em apneia. Já não há apneias neste mundo mercantil. A dada altura do processo a maior parte teve que abandonar, por uns dias ou definitivamente, aquele ambiente para que se pudessem cumprir os compromissos anteriormente assumidos. Festivais, outras residências, apresentações, projectos a entregar… foram razões que, de vez em quando, nos faziam colocar os pés na terra, olhar para lá do vale de St. Erme, procurar o comboio que partisse mais tarde para não se perder pitada da vida quotidiana que depressa se organizou entre refeições fartas e chuva intensa, fazer a mala e sair… para o mundo real… o mundo que se quer transformar a partir do mundo que (n)os transformou, ali, naquele vale.

Nessa roda, dizia, ao longo de três dias – três longos dias – observavam-se já reflexos condicionados do mundo real. Por exemplo, o facto de as notas estarem a ser tomadas não num caderno, entre esquemas e agenda, mas num computador, a maior parte Macintosh, directamente para blogs, sites ou páginas myspace. É a velocidade da informação, é uma reacção imediata esta necessidade de registo público, como uma extensão natural do pensamento. Era um lento acordo entre aquele momento e o futuro. Quebrado o gelo inicial – mesmo que muito desse gelo viesse já derretido pelos encontros anteriores já que grande parte do grupo já se tinha cruzado em Viena – não deixa de ser curioso verificar o desejo de não impor qualquer teoria àquilo que era apresentado. Um desejo quase inato de deixar fluir as apresentações, os discursos, as vontades e os receios. Um receio de não enfrentar, de não confrontar… atitude tão rara quando, precisamente, falamos de artistas, onde os egos insuflados disfarçam as inseguranças e ousam o radicalismo (que houve, mas não de suficiente monta).

Talvez tenha sido o espaço onde tudo se passava (e daí chamar-lhe utópico porque parece irreal que espaços destes teimem em existir) e o momento único que todos pressentiam estar a viver que fizeram com que os dias seguintes seguissem numa dolência confortável que fazia com que as propostas fossem surgindo sem sobreposições, num tango enamorado, ou conscientemente não impositivo. Não havia didáctica, pedagogia ou terapia – e às vezes não o houve por defeito e tudo parecia demasiado perfeito, inquestionável, assustadoramente concertado – que procurasse delimitar o que se fazia, como se quisessem todos apostar num reboot. Sim, um processo de limpeza que poderia, perfeitamente, receber o nome do workshop proposto por António Pedro Lopes: holding on to nothing with everything i've got. Sessões intensas de partilha, não necessariamente pessoal, mas certamente íntima que tinham, de facto, tudo a ver com confiança. Se eu fechar os olhos tu seguras-me? Houve quem caísse ao chão.

É este processo de partilha da intimidade que importa aqui registar, numa altura em que muito se questiona o uso – a meu ver nem sempre justificado ou mal justificado – da biografia no desenvolvimento de um trabalho artístico. Se tomarmos como exemplo o projecto do suíço Christoph Leuenberger, 27, Searching for Intimacy (o seu blog regista o desenvolvimento da pesquisa), intimidade foi uma palavra de ordem neste mês. Através de caminhadas, cartas, conversas ou, naturalmente, partilha de espaços privados, Leuenberger quis explorar as diversas interpretações de intimidade com os outros num exercício algo catártico que muitas vezes entrou, sem licença, no inconfessável íntimo mas que tem tudo a ver com uma certa errância da geração à qual todos pertencemos. Qual a última fronteira a explorar quando nos dizem que já tudo foi explorado? E depois dessa última fronteira, o quê? Já não interessa muito – ou não interessou muito a este grupo – perceber o que cabe e o que fica de fora da dança contemporânea Por isso, e de novo a pergunta, porquê nova geração?

Precisamente porque vivemos hoje num contexto sem grandes margens de ruptura. Se os novos, em vez de jovens, criadores quiserem romper vão fazê-lo contra quem? Meg Stuart, Vera Mantero, João Fiadeiro, Xavier Le Roy, Jérôme Bel, Emmanuelle Huynn, Mathilde Monnier? Em primeiro lugar não podem porque muitos foram formados por esses nomes, num processo de reconhecimento e aproximação que surge, precisamente, da falta que esses outros, os de há quinze anos atrás, sentiram em terem vários corpos com quem dialogar. Em segundo lugar não podem porque os de há quinze anos atrás, com mais ou menos institucionalização, ainda estão, e são, demasiado próximos e cúmplices daquilo que este, novos, defendem. Quanto muito há a sorte de principiante a seu favor, a frescura do olhar novo, se esse olhar novo não vier já formato pelo medo, o receio, o preconceito, o julgamento. E muitas vezes vem. Neste caso também. O medo da classificação é o que mais os assusta. Um receio por vezes infundado já que muitos deles apresentam já uma solidez argumentativa que, confesso, me deixou emocionado.

Casos como o de Jean-Baptiste Veyret-Logerias, francês, 30 anos feitos durante a residência, cuja experiência enquanto chefe de coro, aliada ao trabalho desenvolvido, também em Angers, com Deborah Hay lhe deu margem para pesquisar sobre a sonoridade dos corpos. Parece uma evidência mas a sua mais recente coreografia, ainda em desenvolvimento, inspiratoire/aspiratoire, onde o uso de aspiradores vai consumindo o ar que respira tem uma estranha força hipnótica, rara, que radicaliza a habitual manipulação das máquinas pelo corpo humano, num processo de metamorfose animal e visceral. Ou ainda o da romena, residente em Estrasburgo, Ramona Poenaru, 35, artista visual, com um trabalho assente na exploração das contradições e nos paradoxos do quotidiano, que propôs fazer uma série de retratos sob fundo religioso onde cada um dos intervenientes se deveria descrever de acordo com o modo como se vê e como acha que é visto. Casos que provam que a problemática da geração, e da classificação é, sobretudo, um problema narrativo, já que sendo um dos argumentos fundamentais da modernidade para a construção do seu relato, prova que a história acontece em evolução e não em finitude. Não há linearidade, há apontamentos que pensam a linearidade.

É nessa linha que segue o trabalho de Begüm Ercyias ou de Tommy Noonan, a primeira que quer explorar a ideia de morte através da ficcionalização do processo que antecede o acto, o segundo que acredita, parece-me – ou pelo menos é isso que mostra em Material Girl (2006) ou now here (2007) –, que o auto-domínio do homem sobre a máquina só pode resultar numa humanização de ambos os intervenientes. Uma questão de normalização que encontra várias respostas. Por um lado no trabalho da norte-americana Monica Gillette, 33, intérprete há vários anos e sem vontade em apresentar trabalho em nome individual. O seu site Dance Minute, onde desde há três meses organiza e estrutura um mundo coreográfico pessoal, é um “parque de vídeo-dança" onde ela “regista o mundo à sua volta”. Com experiência longa na edição de cinema e televisão a única regra é que tenha um minuto, “fácil para mim e para ti”, diz, enquanto tenta provar que o voo de uma borboleta é tão coreográfico quanto a mais pormenorizada e ensaiada das sequências formais. É também por aqui que anda o trabalho de Pedro Bastos, brasileiro de 32 anos, pela primeira vez na Europa e fora do Brasil, fotógrafo de paixão vindo de uma cidade do interior onde quis subir a um monte para dizer que existia e cujo trabalho de fixação da luz desenha movimentos tão etéreos e metafóricos quanto a emoção de encontrar nos corpos dos outros o interlocutor certo para a sua arte. É nesta aparente liberdade que se equacionam modos de relação, se experimentam modelos de aproximação entre o emocional e o racional, se estruturam, muitas vezes intuitivamente, processos de trabalho.

Por outro, casos como Marianne Baillot, Perrine Bailleux ou Guilherme Garrido, 26, 27 e 24 anos respectivamente, as primeiras francesas, o último português dão conta de uma necessidade de experimentação que vive do permanente embate fronteiriço, numa angústia e radicalismo nem sempre consentâneos, mas ainda consciente das vantagens e desvantagens da fatalidade de cada intervenção. Os seus trabalhos, Baillot vinda da dança e insistente numa perspectiva feminista, Bailleux e Garrido das artes visuais que cruzam a performance, enquadram-se num mal-de-vivre geracional, numa inconstância típica de quem habita os centros urbanos com a consciência de que o tempo se esgota e cada gesto necessita suplantar o anterior, que tem muito pouco a ver com contra-culturas, por mais urgentes que sejam as necessidades de afirmação de tal argumento. Fazem, isso sim, porque previstas desde cedo, parte das regras do sistema, cujas raízes se instalaram já nos cursos de formação, nos circuitos de programação, nas grelhas de recepção. Por isso, quando falamos de dança contemporânea, falamos de quê?

It’s breathing time!

Se pensarmos nos casos de Pieter Amper, 25, nascido no Burundi, e de Domenico Giustino, 31, italiano com adolescência passada no Texas, ambos a residir em Bruxelas onde frequentam ou frequentaram a escola de Anne Teresa de Keersmaeker, PARTS, reconhecemos nos seus movimentos aquilo que solidificou a escola belga: o virtuosismo interpretativo sem mácula e a generosa exploração das capacidades extensíveis do corpo. Se olharmos para Hajime Fujita, 25, e Sayaka Kaiwa, 26, ambos japoneses, a última a viver na Alemanha, apercebemo-nos do modo como vão ocupando um espaço discretamente enchendo-o depois com uma gestualidade rica em detalhes e ilusoriamente sem rede. Se observarmos os corpos da sul-coreana Min Kyuong Lee, 33, da alemã Jenny Beyer, 28, da mexicana Monterrat Payró, da suiça nascida no Lesotho, Lucie Eidenbenz, 23, ou de Mariella Greil, 28, austríaca, compreendemos de que forma podem ser traduzidas acções banais para movimentos consequentes, devido, na maior parte dos casos, a uma formação que passou pelo ou começou no bailado clássico. Os casos de Thelma Bonavita, 44, vinda do Brasil, Pavlos Kountouriotis, grego, 25, a residir em Londres, Marko Milic, sérvio de 26 anos, ou do australiano Tim Darbyshire mostram também uma prática concertada e uma vontade em explorar, de forma mais primária, os modelos formatados da dança.

Tudo isto está contemplado por essa noção lata de dança contemporânea, mas arrisco dizer que tudo isto funcionaria sem grandes problemas ou discussão profunda, se não fosse a chegada, exactamente a meio da experiência, de Sara Reyhani, Tala Motazedi e Arvand Dashtaray, elas com 27 e ele com 26, os três do Irão, Reyhani coreógrafa, Motazedi dramaturga e Dashtaray encenador. Não fosse isso e, provavelmente, a discussão sobre o que era ou não era dança contemporânea teria continuado centrada em dados adquiridos, convenções assimiladas e definidas por uma Europa centralizadora onde todos tinham vindo adquirir conhecimentos, onde todos eram iguais. Não desmerecendo o raro comprometimento político encontrado, e a ainda mais rara noção da existência de interlocutores atentos, responsáveis e lúcidos, foi porque a pergunta veio do outro lado, do outro, daquele que aqui na Europa tendemos a olhar como exótico, que fomos todos lembrados do óbvio: somos, sempre e também, o outro. Porque, afinal o que é dança contemporânea? Como é se pode dançar contemporaneamente quando há limites morais impostos por terceiros mais fiéis a leis divinas que atentos a desejos humanos? Como é que, por exemplo, se pode fazer contact improvisation quando não se pode tocar o corpo do outro? E o que parecia uma evidência tornou-se um problema de difícil explicação. Afinal quando chega a altura de explicar a evidência, falta a distância. Afinal, não basta ser-se da dança nem se ser contemporâneo para se fazer dança contemporânea, ou basta? Haverá, realmente, a necessidade, hoje, de insistir em definir, quinze ou vinte anos depois dos outros, o que caracteriza a dança contemporânea? Sim.

Porque o facto de apresentarem um projecto claro, que em Janeiro mostrarão em Teerão e para o qual precisariam de seis intérpretes, a serem escolhidos entre os interessados, levou a um reequacionamento do grupo, a uma outra organização que provasse da raridade da experiência; e porque até então os dias eram divididos entre aulas de pilates, yoga, body mind centering, parkour, laughing meditation, canto, ballet, accumulation process, exercícios mais ou menos exigentes do ponto de vista físico ou conceptual, caminhadas na floresta, filmes ao fim da noite e – como que por milagre – permanente vinho da região para encher os copos, a pergunta “aquilo que têm feito é dança contemporânea?” baralhou os dados do jogo.

Dias antes eu, 28 anos, havia proposto que lhe chamássemos actual em vez contemporânea, numa tentativa, também ela exploratória, de incluir para normalizar. Mas o espaço de tempo que vai entre a apresentação de um conceito e o abandono do conforto daqueles que já se conhecem e dominam, e por isso mais facilmente se recusam, demora mais do que um mês. Porque, sobretudo, faltava o olhar exterior, que não chega só porque se é crítico e, à partida, por inerência ou defeito, se está do outro lado da barricada (e não se está). Esse olhar que ao dialogar com um legado colonialista, pressurante e encerrado em dogmas inúteis, obriga a um novo paradigma relacional que, se se deve também interrogar sobre o modo como quer construir pontes entre experimentação e tradição, também aponta as fragilidades de um discurso que só aparentemente é questionado.

Talvez possa parecer retórica de pacotilha afirmar que a tomada de consciência dos limites do outro não aconteceu com um confronto nos limites da disciplina dança, mas no seio da própria disciplina. Como conceber uma arte que se deve sujeitar a outros valores, que não têm que ver com o mercado apenas de gestão cultural, mas sobretudo com os planos social e político? Como entender uma ideia de criação sujeita a condicionantes nem sempre racionais em grande medida empolados por um receio que nada tem que ver com arte? Como afastar do discurso artístico a ganga multicultural que enferma grande parte da criação caritativa, fascinada e debilmente estruturada? E depois como apreender todos estes ensinamentos e transportá-los para um quotidiano reconhecível como aquele que vivemos aqui na Europa?

Em grande medida isso está presente, por exemplo, no discurso de Mia Haugland Habib, 26 anos, norueguesa de origem americana, actualmente membro do conselho artístico da Ópera de Oslo e intérprete de vários coreógrafos, entre os quais Julie Nioche, cujo trabalho impressiona pelo desprendimento com que aborda a falibilidade da imposição de ter que apresentar um discurso sobre o conflito de religiões só porque lhe corre nas veias sangue judaico. Mas está também naquilo que Arvand Dashtaray definiu como “empurrar as paredes que nos cercam pelo lado de dentro”. É essa consciência de resistência, esse sentido de missão que parece pouco útil nesta Europa velha e de definições recauchutadas, que mais atraiu no discurso iraniano. Uma réstia de justificação que vai para além do imediato gozo em se fazer o que se faz. Uma presente noção de intervenção pública e política, tal como se reclamava no primeiro de todos os inícios, e que tanto pode ser aplicada, salvo as devidas distâncias, ao modo como se equaciona viver no mercado, aproveitando dele o que de melhor ele oferece, como à resistência cultural num país em repressão. Novamente do programa: “Sweet and Tender thus seeks to put the power of cultural production and exchange more into the hands of artists themselves. In this way, the heart of Sweet and Tender Collaborations is the meeting of artists. This meeting is vigorous, and challenging. Not only do we help each other produce work, we help each other to increase quality and depth through sharing and exchange”.

Durante um mês, porque houve quem não quisesse deixar uma história por fazer, trinta e dois nomes de outros tantos países do mundo, multiplicando estes pelos locais de residência, viveram juntos num programa de troca artística e social, sem pressas, nem mesmo quando souberam que, no final, se imporia uma apresentação pública. Durante um mês concentraram-se esforços para dar conta de outros modelos de concretização de ambições artísticas. Como sempre, e porque também é de bom-tom dizê-lo, a experiência vale mais do que os resultados finais. Mas temáticas como a identificação da disciplina, a relação hierárquica entre os elementos que nela circulam, os diálogos que deixaram de ser inter-culturais para passarem a ser babélicos, os cruzamentos disciplinares que se tornaram correntes e, algumas vezes, contra-producentes, a consciência de que há um olhar depositado, entre a esperança e a desconfiança, sobre todos eles e, sobretudo, o modo como se deve procurar ser o mais integro e honesto possível através dos objectos apresentados, fizeram deste novo início um princípio de novos desafios. Assim queira o tempo.

O site www.sweetandtender.org reúne material de todos os participantes, incluindo vídeos, fotografias, links para sites, blogs e páginas de cada um dos participantes. Dias 14 e 15, na Comédie de Reims, Le Palais de Tau e La Manége de Reims, o grupo apresenta os seus Fragmentos de Experiências.


Fotografias de Pedro Bastos. Texto escrito para a edição electrónica da revista Mouvement (sexta-feira disponível em francês)

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