domingo, junho 17, 2007

Crítica de teatro: Ensaio, de Victor Hugo Pontes

Imagens desfocadas ou um ensaio por completar

Ensaio
De Victor Hugo Pontes
integrado na programação O Estado do Mundo
12 a 14 de Junho, Auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian

Victor Hugo Pontes é, digamos, um nome que nos últimos dois anos tem sido recorrentemente citado como dos mais relevantes da nova geração de criadores, passando com facilidade as fronteiras do teatro e da dança, mas mantendo uma mesma coerência programática. A sua mais recente proposta, Ensaio, estreada no âmbito do fórum cultural O Estado do Mundo, é disso evidente sinal. As suas peças imediatamente anteriores – Laboratório (Curso de Encenação do Programa de Criatividade e Criação Artística 2005, Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna/Fundação Calouste Gulbenkian), Ícones (um excerto da peça anterior que recebeu o Prémio na categoria de dança Jovens Criadores do Clube Português de Artes e Ideias 2006 e o 1º lugar no 2nd International Choreography Competition Ludwighafen 07 - No-Ballet, em Ludwigshafen, Alemanha) e Fotomontagem (estreado em Março deste ano no Circular – Festival de Artes Performativas, em Vila do Conde, e apresentado depois na BoxNova, Centro Cultural de Belém) – cruzam, de facto, o teatro e a dança, centrando-se sempre no modo como se pode conceber um discurso sobre a representação, enquanto campo de experimentação e constrangimento.

Todas as suas peças passam por uma mesma linearidade que vai buscar ao processo de revelação fotográfica a estrutura narrativa, sofrendo depois de um excesso referencial que impede uma mais flúida apreensão dos objectivos finais. Por isso Ensaio é um passo em frente, e ao mesmo tempo finalizante – espera-se – de um discurso sobre as várias possibilidades da representação de um discurso performático sujeito a contaminações várias e, por isso mesmo, dispersivas. A validade da pesquisa de Victor Hugo Pontes encontra-se na necessária fundamentação de uma posição que integre, assimile e regurgite as lógicas de representação, de modo a que aquilo que é uma persistência argumentativa válida não se torne numa obsessão retórica.

É verdade que indo beber ao material referencial que existe sobre fotografia, e por natural consequência à performance, se desloca o duelo realidade/ficção para um outro campo: o da necessidade de entender os limites – quem os estabelece, porquê e como – entre acção e exposição. Ao optar por sustentar a sua pesquisa performática num campo que está sujeito a um outro tipo de regras, desde logo mais subjectivas e manipuláveis, Victor Hugo Pontes introduz, através dos seus trabalhos, um desejo em pensar de que modo podemos conceber o acontecimento encenado num palco a partir daquilo que nos chega já encenado. Ou seja, aquilo que a escolha do enquadramento fotográfico definiu como acção.

Contudo, a grande mais valia deste Ensaio não está na dramaturgia, mas em Vítor d’Andrade, verdadeiro actor low-profile que, consciente da responsabilidade em substituir o corpo de Victor Hugo Pontes – figura ominpresente nas peças anteriores que sugeria a identificação do texto com o corpo –, força o discurso a uma clarificação. A capacidade que demonstra em nunca se impor ao texto, conduz-nos, através da sua generosíssima interpretação à aventura de pensar, em directo, o modo como uma imagem, mais do que valer por mil palavras, altera o modo como identificamos o que nos rodeia. Há algo de Beckettiano na sua figura, sobretudo de Krapp, o velho trágico que escutava as gravações do passado para entender o presente. È para isso que remetem as gravações que vamos ouvindo, com vozes diferentes (eventualmente a quererem relacionar-se com os vários fantasmas indicados nas cadeiras vazias: Sontag, Walter Benjamin, Antonioni, Agatha Christie, Niepce, Cartier-Bresson…) que vão interrompendo a catatónica representação da figura sem nome, entre o entertainer e o filósofo.

Mas faz mais: liberta o espectáculo de alguma ineficácia dramatúrgica pois na opção de cruzar dois ensaios da mogul Susan Sontag (On Photography, 1973, e Regarding the pain of others, 2003) o autor acaba por não conseguir dar-nos a ver aquilo que, realmente, considera como fundamental para o seu percurso e para a sua própria argumentação. Chegamos ao fim do espectáculo – onde não falta o momento queer da praxe, com a canção Wishing (If I had a photograph of you) dos A Flock of Seagulls cantada a plenos pulmões (do refrão: “If I had a photograph of you/ It's something to remind me/ I wouldn't spend my life just wishing”), e o devolver do olhar ao espectador, com uma polaroid a mostrar que, afinal, as cadeiras onde julgávamos estar sentados estão, afinal, vazias – ficamos sem perceber de que modo a fotografia, e a fixação de um momento, são, para Victor Hugo Pontes, a finitude necessária para ultrapassar o trágico que nos domina.

Há uma qualquer impossibilidade dominante no espectáculo, seja esta a omnipresença das palavras de Sontag, a evidente fragilidade da contra-argumentação, ou a impressão de que aquilo que nas outras peças era claro – a tradução do processo fotográfico em sequência performática –, cede agora à impraticabilidade de encenar textos teóricos. Mas, de novo, espera-se que tendo-se encontrado (ou mostrado) alguma da fundamentação teórica de que careciam as propostas anteriores, não sejam agora outros aspectos os mais prejudicados.

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