sábado, junho 02, 2007

Crítica de dança : Uma lentidão que parece uma velocidade


Coreografia de Tânia Carvalho
Estúdio da Bomba Suicida, Lisboa
28 de Maio, 22h00
Sala cheia
Até dia 03 de Junho

Ao piano, um copo de veneno

Ao contrário da geração da Nova Dança Portuguesa, que poderíamos datar entre 1989-2000, com nomes como os de Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho ou Clara Andermatt entre outros, a nova geração de coreógrafos, a fazer-se notar a partir de 2000 (alguns já trabalhavam antes), não se sustenta numa instável posição de confronto e ruptura com o cânone e o legado mais directo da dança. Prosseguindo o trabalho de casos atípicos na cena nacional – como Miguel Pereira, Filipa Francisco e Ana Borralho/João Galante –, tiveram, na liberdade adquirida com e por aqueles outros criadores – precisamente porque continuam activos –, um lato campo de experimentação que não se socorre da referência para se (auto) justificar, como aconteceu com muitos. Uma tendência generalizada nos vários movimentos coreográficos europeus e que, em Portugal, gerou vários equívocos.
Sendo genérico, sou também generoso, pois falar de uma nova geração é, em si mesmo, uma facilidade crítica que cria ilusões como a existência de agrupamentos. Uma situação que, se já era difícil para os outros, para estes é praticamente impossível.

Contudo, Tânia Carvalho é, com Tiago Guedes, Cláudia Dias e Sónia Baptista, um dos nomes com mais destaque nessa nova geração, ampla, independente e liberta da necessidade de propor uma nova organização espacial, filosófica e coreográfica. O seu mais recente espectáculo é disso um bom exemplo.

Sentada ao piano, interpreta a Sonata para Piano kvk545, de Mozart, numa busca pessoal que leva mais em consideração o processo que o resultado. Qualquer purista dirá o óbvio: quem se propõe a tocar piano ou o sabe fazer ou poupa-nos ao exercício. Para o caso, tanto importa se Tânia Carvalho o faz bem ou mal (não o faz mal, já é um bom princípio), porque o que ali está em causa não é tanto o virtuosismo da interpretação mas a leitura que a coreógrafa quer propor entre o rigor e o limite do intérprete de uma composição e aquele exigido a um bailarino.

Já há muito se reconhecia no seu percurso uma seriedade matemática (ouso a expressão à falta de melhor) que facilmente se associava à composição musical. Orquéstica, peça de grupo de 2006, era essencialmente a transposição de uma partitura para um corpo múltiplo.
Se agora não vai tão longe quanto se esperava, ou desejaria, a coreógrafa joga, ainda assim, com um princípio de composição paralelo, oferecendo-nos a desestruturação sonora, poética e visual de uma mesma partitura. Primeiro a música, experimentada na visível dedicação a que se entrega, tornando-nos cúmplices de um esforço real. A meio, associando o texto de Patrícia Caldeira à desagregação da partitura. Depois no movimento, onde explora aquilo que de mais característico se lhe reconhece: a austeridade e a aridez no gesto controlado, a pesquisa de um limite temporal, a organização de acordo com princípios físicos claros e, diria mesmo, dogmáticos. O modo como combina estes elementos, em particular na fantasmagórica sequência onde o piano toca sozinho e todo o corpo a ele se subjuga, marca a traço trágico um modelo de criação obstinado e autoral.





publicido no jornal Público a 31 de Maio 2007

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