excerto do texto Momentos de transição publicado no programa do espectáculo Programa da Primavera, da Companhia Nacional de Bailado em cartaz até 24 Março no Teatro Camões, em Lisboa.
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Não nos podemos esquecer que Forsythe é contemporâneo de uma corrente artística que teve como equivalentes nas artes plásticas um Andy Warhol, na música um David Bowie e no cinema um Jean-Luc Godard. Ou seja, a reformulação como resposta ao contexto é quase genética. Há uma consciência situacional que o força a este jogo de reciclagem. E Forsythe nunca escondeu a ambição de dar à sua assinatura uma ambiguidade que lhe permitisse a reformulação estética, de forma e conteúdo, consoante os ventos soprassem. O seu percurso, de um pós-neo-clássico à manipulação das novas tecnologias e da vídeo-dança levaram a que se questionasse se era uma fraude ou o grande génio do século XX.
A dúvida permaneceu sempre e assombra o legado deste coreógrafo norte-americano, essencial para compreender a profunda crise que atravessou (e atravessa) a dança nos Estados Unidos depois de George Balanchine, Merce Cunningham e do Judson Dance Theater Group. Mas sobretudo após o advento da dança contemporânea ter deslocado para a Europa, e em particular para o eixo França-Alemanha, o epicentro das reformulações coreográficas. Forsythe inscreveu o seu nome na dança do último quartel do século XX através de um percurso onde reciclou os códigos, sabendo sempre da falibilidade do que fazia. É por isso que mais facilmente se contextualiza o seu trabalho no panorama europeu que no americano – isso mesmo provam as sucessivas encomendas e, desde 1984, a direcção do Ballet de Frankfurt, na Alemanha.
Ele diz: “Eu não sou mais herdeiro de Balanchine que ele era de Petipa. (...) Vivo no tempo da bomba atómica, da poluição e da SIDA, na época do stress, da violência e dos computadores… Sou um coreógrafo de hoje. Trabalho com o vocabulário clássico porque é o meu e me apercebi que na sua desestruturação retiramos as partes estranhas até aqui ocultadas pelo ballet. Considero o meu trabalho como uma actividade de reposicionamento”[2].
The Vertiginous Thrill of Exactitude é disso exemplo. Na peça de 1996 recordamos a resistente organicidade e a precisão suíça de um Concerto Barroco, de Balanchine (1941), mas também a necessária desmontagem contemporânea que recusa a narrativa. Mas sobretudo evita a cedência à dança moderna, vistosa e fátua. Existe, num espaço e num tempo particulares, o do momento da apresentação, como se um hiato temporal extremo ocupasse o palco. É uma elegantemente anacrónica e emocionada peça onde Forsythe leva mais longe a ideia de uma coreografia que vive de cruzamentos referenciais. Ao imprimir, apenas através da música, uma organização dos intérpretes, joga a partir de dados identificáveis regenerando-os.
Não estamos já, e apenas, no diálogo coreografia-música, no que isto pressupõe de cedências mútuas (naturalmente com a subjugação da primeira à segunda). Há um outro elemento-chave: o intérprete, agora humanizado. Forsythe explora o esforço físico (“bailarinos-atletas” chamaram certa vez aos seus intérpretes), mas integra-o na estrutura cénica. É ele o centro desta peça, e não apenas o movimento. A prova disso está na apropriação especial do último andamento da 9ª Sinfonia de Schubert. Criando de forma extraordinária um jogo coreográfico de solos, trios e duetos, ora sincopados ora sincronizados, provoca um jogo de xadrez entre os bailarinos que resulta numa estrutura cumulativa, cada vez mais vertiginosa, quase transcendente. Os intérpretes perdem-se numa espiral de movimentos intensa, noção reforçada pela necessária exactidão com que a devem dançar. Ficamos com a sensação de que poderiam continuar por horas já que a peça não tem necessariamente um princípio, meio e fim. E num tempo de indefinições como este em que vivemos não poderia haver melhor representação.
Legenda da foto: interpretação pelo Kirov Ballet/autoria: John Ross
No You tube encontram-se excertos desta peça.
2 comentários:
vais curtir
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muito boas informações a respeito de William forsythe.
/eu gostaria de saber mais sobre ele...vc poderia por favor me indicar bibliografias e/ou links para saber mais sobre ele?? ficaria muito grato
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