quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Crítica de dança: Casio Tone, Subtone, Tritone, de Sílvia Real

Casio Tone, Subtone, Tritone
de Sílvia Real e Sérgio Pelágio
19 e 25 Janeiro, Culturgest
salas cheias


O estranho e maravilhoso mundo de Domicília

A trilogia Casio Tone (1997), Subtone (2003) e Tritone, de Sílvia Real, é um desses casos cujo fascínio só pode aumentar a cada capítulo deste projecto livre, coerente e dos mais imaginativos da dança portuguesa. Primeiro a casa, depois o trabalho, e agora as férias de Domicília, alter-ego da coreógrafa, regressada para mostrar que a imaginação é maior que os dois metros quadrados onde se move.

No seu micro-universo Domicília obedece a uma geometria do gesto onde nenhum movimento existe sem que outro tenha já sido concluído. Da coordenação, que parte dos diminutos espaços que habita para se metaforizar no corpo, nasce uma coreografia sobre o quotidiano onde tudo é milimetricamente pensado. Exemplo: em Casio Tone a água que lhe enche as botas serve para regar as plantas, em Subtone o cinto com as ferramentas de trabalho guarda pacotes de chá, em Tritone a cama do quarto de hotel é também sofá e rampa de mini-golfe. A estrutura dos espectáculos é semelhante: apresentação/exposição, problema, sonho, solução. Ganha-se no modo como trabalha este dispositivo simples. Os problemas, muitas vezes criados por si, resolvem-se com o mesmo génio com que se movimenta.

Em Casio Tone um candeeiro maior que a casa fá-la apagar toda a mobília, em Subtone combate com armas imprevisivelmente secretas uma aranha que accionava os alarmes do local de trabalho, em Tritone o hotel de luxo é afinal profundamente falso, não há mobiliário que resista ao uso e o sossego prometido é interrompido pelo descontrolo da televisão e da gritaria que vem da praia, o que a leva a desaparecer, misteriosamente do quarto.

Domicília apresenta-se sempre sozinha em palco e de rosto impassível. Acompanham-na linhas comuns: disposição cénica (três paredes que a encerram face à plateia), imaginativa banda-sonora de Sérgio Pelágio que combina jazz com pop e profusão de adereços. A sua força advém de um pragmatismo quase insano que a leva a dividir-se, com a mesma seriedade, por planos do onírico (sonha-se muito e com tudo, sendo os sonhos o escape desta mulher) e do pensamento rápido. O mais imediato que se pode dizer sobre Domicília é o reconhecimento das referências burlescas, de Buster Keaton a Jacques Tati. Mas seria reduzir todo o projecto de Sílvia Real a um tom de farsa pós-moderna que, se não está ausente, não abrange a totalidade do seu discurso.

A citação tem dez anos mas ainda se adequa: “jogando ora com a oposição ora com a redundância das associações entre objectos cénicos, gestos, texto, música e vídeo, Sílvia manipula o discurso e acrescenta-lhe múltiplos sentidos. (…) Sobre um discurso aparentemente banal, tece um outro discurso, compósito e cheio de humor, que ironiza e subverte o primeiro” (Maria de Assis, Movimentos Presentes, 1997).

Tritone apresenta-se de 30 de Janeiro a 07 Fevereiro no CCB

[texto publicado ontem no jornal PÚBLICO. Fotografia de Casio Tone de José Fabião]

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