Quando o estereótipo fala mais alto
Beijos & Abraços
De Luís Assis
Comuna – Teatro de Pesquisa, Lisboa
08 Dezembro 2006, 21h30
Beijos & Abraços
De Luís Assis
Comuna – Teatro de Pesquisa, Lisboa
08 Dezembro 2006, 21h30
Sala quase cheia
Há espectáculos assim, paradoxais, que ampliam esta noção de periferia e se tornam impossíveis de julgar porque reivindicam uma bandeira pessoal e perigosamente doutrinária, ao mesmo tempo que querem parecer-se com modelos e correntes banais no resto do mundo mas que a tacanhez e provinciana realidade portuguesa (ideia deles) impede que se acompanhe. Há espectáculos que vivem no risco de nunca se saber se é melhor ignorá-los, pela sua indigência, presunção e total incapacidade de saírem de si, ou pensá-los correndo o risco, mesmo através de uma reflexão negativa, de os legitimar. «Beijos & Abraços», de Luís Assis, que esteve em cena no espaço de A Comuna – Teatro de Pesquisa, é um desses exemplos. Não é o único, nem sequer é um fenómeno nacional. Mas, pelo modo como se quer destacar de alguma dormência dramatúrgica sobre temas (acha ele e diz a peça) fracturantes, corre o risco de cair do seu próprio pedestal. Que fique já claro, «Beijos & Abraços» é um erro, infelizmente sem concorrência à altura e a fazer gala disso. Cá está o paradoxo.
Há espectáculos assim, paradoxais, que ampliam esta noção de periferia e se tornam impossíveis de julgar porque reivindicam uma bandeira pessoal e perigosamente doutrinária, ao mesmo tempo que querem parecer-se com modelos e correntes banais no resto do mundo mas que a tacanhez e provinciana realidade portuguesa (ideia deles) impede que se acompanhe. Há espectáculos que vivem no risco de nunca se saber se é melhor ignorá-los, pela sua indigência, presunção e total incapacidade de saírem de si, ou pensá-los correndo o risco, mesmo através de uma reflexão negativa, de os legitimar. «Beijos & Abraços», de Luís Assis, que esteve em cena no espaço de A Comuna – Teatro de Pesquisa, é um desses exemplos. Não é o único, nem sequer é um fenómeno nacional. Mas, pelo modo como se quer destacar de alguma dormência dramatúrgica sobre temas (acha ele e diz a peça) fracturantes, corre o risco de cair do seu próprio pedestal. Que fique já claro, «Beijos & Abraços» é um erro, infelizmente sem concorrência à altura e a fazer gala disso. Cá está o paradoxo.
Esqueçamos o óbvio, porque esse não faz teatro, é porta-estandarte de ideais. Escrever-se um texto e encená-lo enquanto autor gay, porque se considera que a ausência de um teatro gay é reflexo de uma comunidade artística homofóbica, é um argumento tão rebuscado e retórico que só uma peça bem urdida e sem vontade de se colocar em bicos de pés nem mostrar somente as ideias de quem escreve, seria capaz de fazer. Ora, como na famosa blague de Gore Vidal, “não basta ser ‘bicha’ para se ser criativo – é preciso ter talento”. «Beijos & Abraços» vive numa certa ideia perversa de suficiência, escusando-se a olhar-se ao espelho e perceber o ridículo de alguma da sua argumentação.
O exercício moralista que o encenador assina não dá margem para uma distanciação entre personagens e autor, isto atendendo (porque me parece ser essa a intenção) a que a peça faz parte de um programa maior de intervenção político-cultural onde se inclui a promoção da peça num site de encontros gay, um diário onde o encenador revela estados de alma e aponta o dedo aos que não a percebem, ou as sessões de leitura de textos anglo-saxónicos de temática queer. Luís Assis, que se diz “cansado desta necessidade de ser discreto”, gosta de se apresentar, sem “meios-termos”, enquanto “actor, encenador e dramaturgo gay”. “Sem complexos”, portanto. Mas esta mesma exposição é o que o impede de chegar à abrangência que tanto reclama.
«Beijos & Abraços» é o segundo tomo de uma trilogia sobre a homossexualidade, iniciada o ano passado com «Gay Solo», um manual de sobrevivência e dissecação para hetero ver, do gay moderno, urbano e cosmopolita, fruto de várias repressões, condenado a viver entre o estereótipo e a individualidade, incapaz de pensar para lá do órgão sexual. Nessa peça Assis explicava que, enfim, havia algo na genética incontrolável do homossexual que tendia a um comportamento específico que, apesar de num plano formal não se distinguir do homem hetero, no caso gay era só mais divertido, mais colorido, mais dramático. Em sete lições expunha uma patologia tão homofóbica quanto a mais primária das caracterizações que habitam o imaginário colectivo. Claro que essa desconstrução, pelo ridículo da forma e o tom algo corrosivo com que o fazia, encontrava adeptos num público atraído pelo pequeno escândalo de uma peça gay mainstream mas feita com fundo intelectual. A coisa auto-destruía-se e, apesar de se querer levar a sério, era algo inofensiva. Dispunha bem.
Aqui, esse one man show ganha três novas parcerias, organizando-se através de uma narrativa evidente e frágil onde o estereótipo do homem gay (Alberto/Luís Assis), para mais intelectual, que cita realizadores obscuros para impressionar os amigos, vive na ressaca de ter vivido no estrangeiro e toca há anos o mesmo concerto de Vivaldi em bandolim, tem uma relação com um outro mais novo (Ricardo/Paulo Guedes), do interior do país, que saiu de casa cedo e só em Lisboa descobriu a sua sexualidade, empregado de mesa mas com dinheiro suficiente para comprar uma casa. Vivem entre crises e sexo violento, humilhações e dependências emocionais. Estão encerrados no seu micro-cosmos referencial e dele não querem sair. Há os filmes de galãs ambíguos e divas enigmáticas e nebulosas, o minimalismo decorativo de quem já nasceu depois do excesso e acha chique ter uma sala vazia com sofás desconfortáveis mas caros porque são de design, o círculo de amigos encerrado na escolha sexual, um certo enfado pela vida que só uma noite na discoteca pode salvar, etc. Num suposto contraponto com esse casal gay há um outro, lésbico (Ângela/Maria Camões, a mais nova, Diana/Cláudia Andrade, a mais velha), que é caracterizado por um enleio amoroso, uma delicadeza e uma sensatez irrealista. Entre estes pares joga-se uma espécie de xadrez emocional e acabam por trocar de parceiros para responder às fantasias bissexuais do mais novo, aos impulsos sádicos do mais velho, e ao desejo de novas experiências delas. Inevitavelmente uma decisão trágica que os afectará a todos. Os casais separam-se, e trocam entre si, sendo que o mais velho, gay furioso, trágico e convicto fica com a mais velha das raparigas, mesmo que não deixe de procurar encontros fortuitos na Internet ou no teletexto.
Não vem grande mal ao mundo, nem mesmo à dramaturgia, que se ache estar-se a retratar uma realidade existente. Certamente que existirão histórias assim. Mas o que a peça quer fazer passar é que os homossexuais sentem tudo de maneira diferente. Para além de que são todos iguais. Seja de forma mais intensa ou não, o que se diz é que a condição sexual altera o modo como os relacionamentos funcionam. Qualquer pessoa sensata dirá que, mal ou bem, não é por alguém ser gay ou lésbica, que o modo de se relacionar com os outros, seja a que nível for, é diferente dos heteros. Contudo não acredito que Luís Assis, ou Alberto, acredite realmente nisso. Alberto, ou Luís Assis, vê o mundo como um permanente campo minado para os gays que se devem refugiar dos preconceitos dos heteros, onde a mediocridade reina no debate sexual em Portugal, ou onde as diferenças que os gays têm das lésbicas permitem que, na peça, estas sejam sempre tratadas de forma machista, preconceituosa e homofóbica – p. ex: “uma verdadeira fufa quer-se de trombas”, “com as mulheres é sempre um pouco diferente… mas no fundo é sempre prazer”. O encenador coloca a sua personagem, entre palavrões e gritos, a insurgir-se, entre outros, contra as associações de defesa dos direitos sexuais, acusando-as de não saberem construir um discurso político consciente e se deixarem levar pelo mediatismo e visibilidade dos gay prides. E defende convictamente que nos EUA, o exemplo maior ao qual recorre sempre, quando um gay quer ser activista sai para as ruas e manifesta-se sem perder tempo com estratégias auto-promocionais de políticos. Por mais verdadeiro que seja este quadro, o estereótipo fala mais alto. O encenador, através da sua personagem, reduz os gays a divisões onde uns gostam da Callas, recitam Verlaine e ejaculam a gritar por Agamémnon, e outros ouvem a Madonna e gostam do Esquadrão G.
«Beijos & Abraços» é um texto panfletário e redutor como há muito não se via e, sobretudo, não se esperava numa área que tem tantos textos interessantes – alguns deles seleccionados pelo próprio encenador para as suas leituras de fim de semana. É um texto perigoso e de tendência doutrinária porque quer fazer passar um certo estado de alma inconformado, que é o do autor, através de um vazio dramatúrgico e interventivo. Luís Assis acredita que uma vez que escreve e diz o que pensa“sem complexos” , isso se torna verdade. Pior, que isso é a verdade. O uso de expressões fortes e a encenação de cenas pretensamente chocantes - entre as várias simulações sexuais à inglesa, a penetração forçada dos dois homens a querer relacionar-se com a violação de Diana por Alberto com que encerra a peça -, são exemplos de uma lógica cénica medíocre apostada no sensacionalismo. Há uma vontade gratuita de chocar porque se acredita que se estão a romper fronteiras. Não estão. Felizmente que têm sido apresentados recorrentes exemplos em Portugal, seja através de traduções, seja em encenações estrangeiras, deste modelo ao qual Luís Assis se quer forçosamente associar: o de um espelho da sociedade decadente e podre. Gostos à parte, há uns que saltam logo à memória. Só no caso dos dramaturgos, entre heteros e gays, vivos e mortos, há Sarah Kane, Mark Ravenhill, Martin Crimp, David Harrower, Marius von Mayerburg, Don DeLillo, Elfriede Jelienek, Tony Kushner, Neil la Butte. A lista podia continuar…
A peça, começando por ser fundamentalmente um problema de texto, para mais composto por diálogos banais, não sobrevive para lá da imposição de um modelo de mediocridade cénica, do qual fazem parte um desenho de luz inexistente – cada mudança é feita com cortes abruptos de interruptores -, um cenário pobrezinho, pálido e deslavado, composto por módulos de sofá e lençóis de cetim, que variam nas suas funções, uma roufenha gravação do concerto de Vivaldi, e umas longas e inexplicavelmente expostas mutações de cenário à vista de todos. Salva-se o esforço dos outros três actores, cuja profundidade das personagens é igual a uma folha de papel, e que sem direcção - sobretudo elas -, fazem de tudo para não se deixar trucidar pelo ego e pela verve do encenador/protagonista.
Posto isto, por melhores que fossem as intenções de Luís Assis, não deixa de se ficar com a sensação de que há uma incapacidade em se ser incisivo, directo, explícito e claro naquilo que quer fazer e dizer. Há a crença de que o facto de ser gay o legitima no conhecimento do que fala. Há uma moral auto-imposta que enferma e quer condicionar o olhar. Há uma pretensa vontade de chocar mas sem saber muito bem como e por isso a recorrência à violência. Há uma recusa gritante de um pensamento e de uma implicação que vá para além da organização do estereótipo. Até pode ser que isto apele a algumas pessoas – e as reacções de algum público na sala, bem como alguns comentários transcritos pelo autor no seu site dão disso conta -, mas está longe de ser o grande risco com que se quer vender. É aliás de um bocejo fatal.
fotografias da peça: João Carlos
7 comentários:
tantas palavras para dizer: Bela Merda. É mais conciso e exacto.
Caro Tiago, já acompanho este blog há mais de um ano, e só agora... enfim, neste momento específico, obrigado por pores em palavras a tristeza que também senti. Um abraço desconhecido, Miguel
A tentativa de fazer um teatro dirigido ao público gay é boa mas tem de ser muito bem feita ou então é contra producente.
Teatro para gays? porquê? porque não teatro para fumadores ou não fumadores, para desportistas, para quem usa óculos, para quem faz vela?...
não percebo
este blogue está a ficar paneleiro de mais...
nada contra, é só uma constatação.
Tiago,
Sou fêmea hetero (convivo maritalmente com um macho da espécie Homo Sapiens, como eu), vi a peça com amigos (H.S. machos) que se identificam com a identidade Gay (portuguesa do início do séc XXI). Um deles pediu-me desculpa no fim da peça, envergonhado pelo machismo que esta transmitia. Farto saber que eu sei que um indivíduo não define um grupo, ninguém deve desculpas a ninguém.
Eu ri-me durante grande parte da peça, interpretei-a como uma sátira ao ridículo de alguns machos "Homo Sapiens tia" (pelos tiques de linguagem oral e gestual, independentemente dos parceiros que escolhem). Como quem goza com Sportinguistas quando reclamam o seu direito à vitória. A linguagem ideológica/emocional é um pouco cega, às vezes diverte pelo grotesco, mas quando tudo isso está inconsciente, não acrescenta nada à linguagem artística.
Subescrevo a tua crítica inteiramente,continua a escrever.
Beijos
anónima
Não vi as peças em questão, mas vi a curta metragem, a ultima e penso que única. Conheço o autor pessoalmente. as criticas aqui referidas encaixam como um puzzle na sua personalidade doentia, egocêntrica e destrutiva. A sua concepção do mundo não fica atrás de qualquer oligofrenico.É uma criatura curiosa , sinistra e de uma mal formação atroz.
Possui um carácter psicopata e está tão ligado a pensamentos pré concebidos e redutores que não consegue ver para além disso.
No fundo é uma criatura digna de pena. Não conhece o conceito de amizade nem de amor, excepto os que só existem na sua cabeça e que não são partilhados pelo comum dos mortais.
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