terça-feira, outubro 03, 2006

Manifestação de extremistas à porta do Teatro Nacional S. João

A notícia veio publicada na capa do jornal gratuito Destak, edição do Porto, de ontem, e ainda no Primeiro de Janeiro. Um grupo de cerca de vinte simpatizantes nazis manifestou-se, no passado sábado 30 Setembro, à entrada do Teatro Nacional S. João, no Porto, onde decorre a apresentação, até 08 de Outubro, da peça Os Negros, de Jean Genet. Os argumentos para a manifestação apontavam armas a um racismo anti-branco e a " um Sistema [onde] o racismo é uma via de sentido único, logo tem todo o gosto em nos fazer pagar, através dos nossos impostos, os insultos gratuitos da peça “Os Negros”, um manifesto exemplo de racismo, só que neste caso anti-branco". Anunciada desde dia 27 de Setembro no site do Partido Nacional Renovador, a manifestação (ver cartaz) passou despercebida à maioria do público, e não impediu que o espectáculo fosse apresentado sem sobressaltos. O grupo de manifestantes dispersou logo após o início da peça, mas o site Terra Identidade Resistência, que inclusive apresenta fotografias da acção de protesto, garante terem-se cumprido os objectivos.

Encenada por Rogério de Carvalho e com um elenco inteiramente constituído por actores negros, a peça , escrita "não em favor dos negros, mas contra os brancos", tem tradução de Armando Silva Carvalho a partir do texto escrito em 1958. O próprio autor, Jean Genet, questionou-se acerca dessa condição negra: "Um dia, um actor pediu-me que escrevesse uma peça que devesse ser representada por negros. Mas afinal o que é um negro? E antes de mais, qual é a cor de um negro?"

Numa das entrevistas incluídas no programa do espectáculo, Jean Genet é claro acerca deste seu olhar pessoal sobre os negros: "Se as minhas peças estão ao serviço dos negros, isso não me preocupa. Não creio, aliás. Eu acho que a acção, a luta directa contra o colonialismo, faz mais pelos negros do que uma peça de teatro." [...] "Procurei dar a ouvir uma voz profunda que não podia ser dada a ouvir pelos negros e todos os seres alienados. Um crítico disse que as criadas 'não falam assim'. Elas falam assim, mas só comigo, à meia-noite. Se me dissessem que os negros não falam assim, diria que se encostássemos a orelha ao coração deles ouviríamos mais ou menos isto. É preciso saber ouvir o não formulado."

O encenador, Rogério de Carvalho, ele próprio negro e responsável por uma outra encenação da peça com actores brancos em 1986 no Teatro do Século, em Lisboa, conta em entrevista também incluída no programa, que prefere a ideia de reflexão em vez de confrontação: "Para nós, para um elenco constituído por 'negros', é como se estivéssemos perante uma reflexão sobre o que é ser 'negro', confrontados com a própria desmontagem do facto de a palavra 'negro' corresponder à visão que o branco tem de um preto, visão essa que nos foi sendo inculcada. Trata-se de uma reflexão que conduz à libertação desse próprio mecanismo. E esclareça-se que a peça não se circunscreve a África, chega-se mesmo quase à conclusão de que a acção da peça se passa em França, ou algo semelhante. Mas a realidade dramática que Genet propõe é um jogo que ultrapassa a própria questão política, da relação entre explorado e explorador, para articular uma visão sobre o próprio mecanismo do teatro, criando uma realidade que só funciona dentro da própria realidade cénica."

Não são novas estas reacções à peça, escrita em plena revolução social afro-americana e no rescaldo da derrota francesa no Vietname, sendo famosa a frase da cineasta Sarah Maldoror à escritora Marguerite Duras: "Cette pièce vous aidera à nous connaître mieux. C'est la seule pièce que nous ayons pour le moment à notre disposition pour vous éduquer, pour essayer de traduire à vos yeux le ridicule de votre idée sur nous." Tal como nao é nova, e muito menos sem polémica, o facto da peça ser totalmente representada por actores negros.

Em reportagem publicada aquando da estreia desta nova encenação, o Diário de Notícias recordava que "no prefácio de uma das últimas edições de Os Negros, Jean Genet lembra que a peça foi escrita por um branco, mas deve ser representada por negros. 'Quis que esta peça fosse só representada por eles.' Num outro texto, onde dá várias indicações 'para representar Os Negros', diz que o espectáculo destina-se a um público de brancos. 'Mas se por um acaso muito estranho for representada para um público de negros, será necessário em cada sessão convidar um branco.' O produtor do espectáculo, indicava Genet, deveria receber o branco - homem ou mulher - e conduzi-lo ao seu lugar, 'de preferência na primeira fila da plateia. Os actores irão representar só para ele.' Se nenhum branco estiver disposto a isso, 'distribuam à entrada máscaras de brancos ao público negro'."

Mas, na verdade, não foram poucas as vezes em que a peça foi feita recorrendo a actores brancos usando maquilhagem. Sobre esse aspecto, e recordando uma encenação feita em Bobigny (região de Paris, Franca) em 2001, o encenador Allain Olivier esclarece: " Faire jouer Les Nègres par des Africains, Antillais et métis est indispensable. La pièce a pour but de mettre à mal la bonne conscience blanche." [...] "les théâtres nationaux continuent de prétendre qu'il n'y a pas assez de personnages noirs au répertoire pour recruter des acteurs noirs dans les troupes. Néanmoins, il ne faut pas exercer une démagogie à l'envers : difficile de faire débarquer un Africain dans Marivaux par exemple."

O facto de ter decorrido uma manifestação de protesto, para mais num país com leis específicas sobre este tipo de organizações, diz bem da importância de um teatro que não cede aos mais demagógicos preconceitos.



Ver o programa do espectáculo, com textos de Jean Genet, Rogério de Carvalho, Armando Silva Carvalho, Edmund White, André Bazin e Regina Guimarães, entre outros. Ler ainda entrevista com Jean Genet.

4 comentários:

Pedro Ludgero disse...

A peça de Genet deixou-me em estado de exaltação.Não sou negro. Mas tenho, como todos, uma dimensão de negrume que recusa tanto a autoridade quanto a complacência.
Abraço

Anónimo disse...

É triste vivermos numa Europa de preconceitos. Vinte brutos é muita gente, mas considero que quanto mais importância lhes dermos mais crescem!
Sobre os demagógicos preconceitos... há que terminar com eles! No teatro, na Academia,na Política... na Vida!

António Marques Pereira

MicasMariana disse...

Não fazia ideia que se tinha passado isto!! Mas ainda bem, nos últimos tempos estas manifestações de mau gosto têm tido a cobertura que merecem, nenhuma!
VIVA O TEATRO!

Anónimo disse...

VIVA