quinta-feira, julho 13, 2006

Abordagens ao Festival de Almada: Don, mecénes et adorateurs

crítica de teatro

A resistência do dom
Dom, mecenas e adoradores
encenação de Bernard Sobel (Théâtre de Genevilliers, França)
23º Festival de Almada,Teatro Municipal de Almada, 7 de Julho, 21h00
Sala cheia

O título do texto de Ostrovski pode servir para organizar a leitura sobre a actualidade e pertinência crítica do espectáculo encenado por Bernard Sobel. Por um lado, o dom, esse elemento pessoal e intransmissível, cuja força de manifestação escapa à linguagem e à moral, escapa às palavras e aos deveres. A personagem que incorpora esta relação com um dom é Néguina, uma jovem actriz de província que ganha os seus primeiros sucessos, dividida entre a manifestação do que lhe é natural, ser actriz, e a obrigação moral de servir o próximo, de ser útil, tendência manifesta na personagem do seu noivo, Mélouzov. E é entre o que o seu noivo representa para si – mais do que o homem, a moral – e entre a legião de mecenas e adoradores que a cercam e bajulam, desde o velho assistente do teatro ao Príncipe, é entre viver uma imagem de si própria ou viver uma prática comum que Néguina se divide. No final, descobrirá que o seu dom é imperativo, que a sua moral é praticada na manifestação desse dom, e o que parecia ser uma escolha entre opostos torna-se a descoberta pessoal de que o teatro é trabalho também, é esforço e dedicação, e que também a sua imagem resultará de uma prática pessoal, mas também colectiva.

Deste modo, o texto de Ostrovski procura superar o que seria uma oposição instituída, entre a superficialidade do teatro e a urgência da vida prática, a inutilidade da arte perante a utilidade de visões realistas e práticas. É por isso que o tema do dom se concentra na personagem de uma actriz que cresce fora da capital, algures numa posição intermédia, possibilitando a escolha. O dom deixa de ser esse elemento misterioso, místico, inatingível e incognoscível, para passar a ser uma qualidade inata, uma graça natural, mas sujeita a trabalho. Contudo, o que não se altera em relação ao dom é a sua força interior, isto é, de alguma forma, o seu irremediável destino. E é entre escolha e destino que se joga a possibilidade de acontecimento do dom, entre a sua existência e a possibilidade da sua manifestação.

Neste contexto, Ostrovski utiliza o teatro como meio de operar a passagem de um sistema ilusório a uma possibilidade real. O sistema ilusório não será o do teatro em particular mas o da sua oposição a uma moral do trabalho. A possibilidade real é a de que a arte também é trabalho, também é moral. Mas porquê o teatro e não a pintura ou a música como artes que pudessem exemplificar esta ideia? Talvez porque o teatro era, no contexto do sec. XIX, o melhor exemplo de superficialidade, no sentido de que criava em seu redor essa fauna de mecenas e adoradores de imagens fátuas.

Dito assim, o texto ganha contornos programáticos do pensamento e actividade de Ostrovski no contexto teatral russo. O espectáculo de Bernard Sobel é actual neste sentido, de que arte deve ser entendida neste compromisso do dom, o compromisso entre o destino de quem o tem e o escolhe e as condições de produção e mercado que insistem – e insistirão – em perguntar pela qualidade utilitária dessas manifestações. A encenação do texto escolhe apresentar estes conteúdos de forma evocativa, procurando representar um certo espírito de época, mas evitando a re-apresentação dos mesmos códigos convencionais. Nesse sentido, a cenografia cria a sua evocação através de estratégias artificiais que jogam a favor da encenação, como a marcação de espaços através de adereços pontuais, ou quando o interior do teatro é representado pelas costas dos cenários, de forma quase construtivista, pela presença de actores do lado da plateia e, sobretudo, na cena final, em que a estação é figurada por uma série de placas de madeira que funcionam como os antigos telões de trompe l’oeil, dando a sensação de profundidade e perspectiva, enquadrando a cena que decorre em torno de uma mesa comprida.

Mas, apesar de a cenografia trazer um sabor de metateatro, de teatro-dentro-do-teatro, essa tendência fica por aí. A direcção dos actores é também um dos pontos fortes do espectáculo, com marcações físicas e vocais fortes. Mas, muitas das vezes, demasiado fortes. O que daí resulta é a sensação de que a direcção de actores privilegiou cada actor isoladamente quando em conjunto se sentem diferenças de registo que perturbam a homogeneidade que se sente desejada ao longo do espectáculo. Esta homogeneidade das cenas acaba também por fazê-las estender, tornando-as fastidiosas, sem uma curva dramatúrgica pontuada. Os actores movem-se no grande palco do Teatro Municipal de Almada de forma a poderem ocupar todo o espaço mas, por vezes, isso cria dificuldades à continuidade da acção, repartida com a legendagem (muito) alta. Assim, o espectáculo consegue expor o conflito pessoal de Néguina na relação com os que a rodeiam, utilizando a evocação do teatro como meio de ilusão e desilusão, mas por uma homogeneidade que planifica certas cenas e corre mesmo o risco de passar por clássica.


Pedro Manuel

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