terça-feira, junho 06, 2006

Na primeira pessoa (II): Luiz de Abreu

Luiz de Abreu é um dos coréografos brasileiros presentes no Alkantara festival. Hoje e amanhã, no S. Luiz - Teatro Municipal, apresenta Samba do crioulo doido, uma criação de 2004 que reflecte sobre o modo como a política, a cultura e a sociedade olham e pensam, entre outras coisas, o negro no que isso representa de identidade do Brasil. O título, que no Brasil é usado para designar caos e desorganização, recupera um samba do princípio do século XX, da autoria de Stanislaw Ponte Preta, onde a história do país é completamente trocada. O espectáculo - uma breve coreografia de vinte minutos - tem sido recebida com grande entusiasmo, pondo o dedo na ferida de problemas relacionados como o estereótipo, a representação ou o fétiche. Contra uma imensa bandeira do Brasil, o corpo nú do intérprete quer ser um ataque directo, e sem metáforas, aos discursos nacionalistas. Nesta conversa, Luiz de Abreu fala da identidade, de escolha e responsabilidade. Mas fala também da necessidade de afirmar uma arte política, da demissão das elites e do Brasil como caldeirão de culturas que precisam de encontrar um modo de se organizarem. O futuro está na raça-Brasil, diz o coreógrafo, que já foi ameaçado de morte por causa da apresentação deste espectáculo.


«O meu trabalho é do tamanho do meu corpo»

A expressão samba do crioulo doido significa caos e desorganização. Este espectáculo é a tua proposta de organização?

Não. É caos mesmo. E assumo-o.

Falamos de identidade brasileira, mas falamos sobretudo da dimensão política do gesto.

Sim. Curto e grosso eu não faria uma arte que não tivesse um cunho político. E a minha dança só existe se tiver esse cunho, porque sem isso ela não tem função. Para mim a arte tem que ter uma função, tem que ser funcional.

Essa dimensão política parte sempre da tua posição em relação ao mundo?

É sempre a minha opinião. E há coisas concretas sobre as quais me interessa falar: racismo, estereótipo, como se vê e se vende o Brasil, tanto fora como dentro. A mulata, o negro como objecto sexual, o sentido de pátria, de nação. Esta história passa-se no Brasil. E o corpo que dança é o corpo negro. É disso que estou falando.

Mas é uma coisa que só diz respeito ao Brasil ou pode ser transposto para outros contextos?

Claro. Alguém disse que eu só posso ser universal se eu falar do quintal da minha casa. Mas há pessoas brancas, judias que choram ao ver este espectáculo. Eu não estou a falar de uma classe ou para o negro, até porque poucos negros viram o meu espectáculo, sobretudo pela falta de acesso a esta elite onde eu me movo.

Não existe portanto uma fronteira, seja ela natural ou física?

Eu acredito na mestiçagem da dança. Acho que é impossível estar no mundo e ter um trabalho completamente original, de você só na sua cultura. No Brasil temos um termo que é a antropofagia que vem dos índios. Eles achavam que se se comesse a pessoa, pegar-se-ia o poder dessa pessoa. Não era para se alimentar mas para ficar com o espírito e a ideia. A gente traz isso na cultura desde que o Brasil é Brasil. Nós desde sempre que estamos globalizados. Como não pensar isso se nós temos cultura vinda dos índios, da África, de Portugal, alemães… Eu acho que não tem que ter fronteira. O meu trabalho é do tamanho do meu corpo. A fronteira está em mim. Eu falo do corpo negro e é quase didáctico porque no Brasil tem uma grande falta de escritores, pensadores ou professores negros. Quem fala normalmente sobre o negro são os antropólogos brancos. Tudo bem, mas há a questão da experiência que é impossível passar. É pessoal, está à flor da pele. É da pele. O limite do meu trabalho é o meu corpo, com todas as informações que estão no mundo.

Há nessa dimensão política uma reflexão sobre o modo como a dança no Brasil está a pensar o brasileiro?

Eu não penso isso porque eu não sei sobre isso, sinceramente. Não me preocupa a meta-linguística. Até podes encontrar, mas não é a minha preocupação. Pode ser interessante criar estética, linguagem, mas ficar discutindo em cima do próprio objecto pode até ser bom, mas eu não estou falando da dança nem do objecto. Há uma dimensão política que acaba por ser mais forte que o próprio objecto.

Provavelmente porque num país que vive em constante sobressalto político, essa dimensão se impõe ao próprio objecto. E isso tanto serve os nacionalismos fáceis e os exacerbamentos pátrios como a denúncia das realidades.

Exacto. Mas eu não sei nem consigo controlar isso. Há até quem se ria de tudo. Houve um crítico em Belo Horizonte que disse que o espectáculo era muito perigoso porque as pessoas podem sair dali sem reflexão nenhuma, só rindo. Mas tem de tudo. Houve uma vez em que eu quase fui preso e morto no Piaúi, no interior do Brasil. Apresentei-me na Serra da Capivara, um sítio arqueológico religioso e evangélico, onde há uma série de coisas rupestres e ancestrais, e a mulher do Prefeito, que era evangélica quando começou a ver o espectáculo foi na polícia e pediu ordem de prisão imediata para mim, dizendo que era um ultraje. A questão estava no uso da bandeira nacional que eu coloco no cenário e também visto. Eu sofri ameaças de morte, teve um dia inteiro de negociação sobre ir ou não preso, que depois, obviamente ficou tudo resolvido porque eu tenho liberdade para fazer o que quero. O espectáculo ultrapassa-me. Eu falo de mim mas estou a falar do ser humano também, porque o gesto é uma coisa comum. Mas eu também não quero fazer uma dança nacional. Eu uso símbolos nacionais porque talvez o Brasil seja um dos poucos países em que o assunto do dia, tanto na Academia como no botequim, é o Brasil, é a identidade.

A identidade questionada de que forma?

O país é grande demais. Cada estado tem a sua própria cultura. Como é que se junta isso tudo e se diz que é um país? A noção de país e pátria é uma coisa homogénea. Qual e a nossa identidade? Somos índios, negros, o quê? O Darcy Ribeiro fala que o futuro do país é a miscigenação. Uma raça-Brasil. E isso está no meu trabalho. Por ser um país de terceiro mundo e também com problemas colonialistas, estamos sempre voltados para a Europa. Voltar as costas à América e olhar em frente para a Europa. Há uma linha divisória que define o que é alta e baixa cultura. Isso é uma questão de identidade. O Brasil tem uma cultura riquíssima, é rico demais… três povos, caramba.

Tu defines como o brasileiro?

Ser brasileiro é ter esperança.

Esperança em quê?

Em acções. Em fazer coisas. E não é acção social, caridadezinha. É fazer mesmo. Eu não quero grandes ideias e só falo do meu particular.

Não falas do Homem, portanto.

Olha… eu estou achando que a humanidade está perdida.

Falas então em responsabilidade individual?

Este trabalho é uma urgência. Não posso deitar-me e deixar passar as coisas. Se isso der eco, já é bom. Mas eu estou muito chateado com o facto de só me movimentar nas elites. Os festivais, os espectáculos… é tudo uma elite. E por isso eu ando a tentar levar a coisa para outros lugares, onde se possa ver o meu espectáculo realmente. É claro que é bom fazer para as elites, mas quando eu faço o espectáculo para um público que não tem tanto acesso, a coisa é visceral. E aí eu sinto que, porra, estou a conseguir comunicar. É a questão do exemplo. Há uma série de meninos negros que não tem exemplos positivos. Têm o Ronaldinho e Péle, porque o desejo é serem futebolistas. Nunca é ser um médico, engenheiro, professor, escritor. Essa é que é a escolha: como é que você pode escolher e o quê?

Tu conseguiste isso de pertencer a uma alta cultura. Isso deve-se a quê? À persistência, à genética…

Deus [risos].Não, é uma persistência pessoal.

É uma escolha e um problema de persistência na escolha.

Sim.

Quando há uns que não podem escolher, há outros que o poderiam fazer e não fazem.

Sim. O Péle é um deles. Um negro que escolheu ser branco. Mas a discussão no Brasil hoje é essa: a do negro ter acesso a tudo. E há vários grupos que reivindicam coisas: as putas estão fazendo um sindicato, os travestis estão reivindicando o direito de trabalhar livremente nas ruas, os transexuais querem que a operação seja de graça no Brasil, os gays querem casar e estamos lutando por isso para haver leis para casamento, as mulheres estão lutando para equiparar salário. Por exemplo, só há pouco tempo se conseguiu tirar dos pedidos de emprego para secretárias a indicação “com boa aparência”. E você não via secretárias negras em nenhum lugar, porque as secretárias são brancas e louras de preferência. Isso não é ditadura, não é fascismo, é uma realidade. E eu tenho um direito.

Mas em que medida é que os próprios grupos não contribuem para essa segregação? Lembro-me da criação recente de um canal exclusivamente feito por e para negros. Fará sentida uma auto-segregação?

Neste momento sim. Mas só funciona se for transitória. O Gilberto Gil [ministro da Cultura, negro e artista] faz parte desta mudança, mas não é a mudança. É importante que se criem Barbies negras, é importante haver apresentadores de televisão negros, e escritores, professores… Assim como o índio. Além do canal também estamos a discutir as quotas de negros nas universidades. É uma discussão louca, com grupos completamente divididos. Eu acho que deve [haver]. No outro dia ouvi uma menina estudante que dizia não poder ser porque os negros iam chegar na universidade e ficavam perdidos, “não vão saber conviver junto com a gente”, dizia ela. Há trezentos anos de desfasagem que precisam ser recuperados.

Até onde é que vai a responsabilidade do negro em perpetuar essa relação desequilibrada, ou de facto nunca houve condições reais para um equilíbrio?

Eu acho que nunca teve essas condições. Por exemplo, eu tento ter uma consciência, tento saber que sou negro, onde estou, em que contexto vivo e o que posso fazer para mudar e ajudar a mudar. Mas quando tem um negro que não tem essa consciência e que se sente branco nem percebendo o preconceito, tudo bem. Não é por ser negro que tem que ter uma consciência, mas se tiver… Ele foi criado daquele jeito. Tem uma genética cultural que o transformou. Tal como tem gay que é homofóbico, não é de esquerda, é católico… Essa discussão sobre o negro está muito viva no Brasil. Quando você chega no Brasil e pergunta se aqui tem racismo, as pessoas te respondem que não, que somos uma democracia racial. Isso é mentira e eu falo disso neste espectáculo. Democracia racial era se todos tivessem aceso a tudo do mesmo jeito. O negro não tem acesso porque essas políticas estão sendo feitas agora. Eu não estou fazendo uma retórica porque as leis estão sendo feitas. Se há lei o problema existe. Eu sinto que o negro virou moeda de troca, um objecto de exibição.

Um fetiche sexual. Dimensão que também trabalhas.

A pretensão não é a sexualidade. Não há Freud aqui. Eu trabalho o corpo como corpo e como coisa, não levo para o erótico. E nessa coisa está a mulata, estou eu enquanto gay, estão várias coisas porque é um corpo híbrido. Mas eu não faço gestos obscenos, mesmo os que podem ser vistos assim como eu balançando o pinto [pénis], enfiando a bandeira [do Brasil] no cú… Não é aí a sedução. O corpo é um objecto desejante que não se consegue atingir. E eu pergunto porque é que esse corpo está a ser trabalhado assim?

A questão é saber como se evita essa erotização do corpo do negro.

Você está a falar de construção da linguagem e eu não sei responder a isso. Eu tenho estas questões e eu vou fazendo. Eu não tenho receita. Tem que ver com a urgência, com a coisa. Eu não quero criar um método ou uma didáctica. Esta é só a minha opinião no mundo. E este corpo é só meu. Mais do que as questões semióticas que envolvem a arte, e estou interessado em trabalhar com a intuição, que não vem de Deus, mas de um trabalho árduo e persistente. Eu espero não fechar o meu discurso nisso, mas neste momento estão a ficar um pouco assim como forma de preservar. Mas não tenho pretensão de fazer um novo gueto.

4 comentários:

M de M disse...

Conseguiu captar toda a minha atenção...agora "vamos por em pratica o que está escrito no papel!", ou seja quero ver em prática toda esta teoria.
;)

indigente andrajoso disse...

ta visto e comprovado, curioso, não tinha lido a entrevista e a peça fala de tudo o que ele disse. gostei muito

Miguel Manso disse...

encontrei o luiz na rua eram seis da manhã. eu estava acompanhado ele estava sozinho. nenhum dos três tinha dormido. curiosamente, isto: eu não tinha visto o samba do crioulo doido, não o conhecia, tinhamos à nossa frente a assembleia da republica (!), ele estava perdido sem saber como chegar à rua do olival, eu percebi que rua dorival (caymmi) e começámos a conversar - do brasil, do negro, de portugal, do peso e força do estado - olhando para o neo classisismo pesado do edificio de são bento.
aprendi um termo novo: pichar (será?) que é escrever e gaffitar nas paredes das ruas. e recebi a incitação: há que pichar forte esse país e esse estado.

muito interessante esse luiz!

DRICA SANTOS disse...

Olá Tiago!me interessou muito esta entrevista com Luiz de Abreu. Veio de encontro a minha busca no mestrado. Tocam no mesmo terreno ardiloso que é discutir o racismo, sobretudo por meio da arte (teatro e dança)Gostaria de saber mais sobre o Luiz ou até mesmo de obter o contato dele...vc teria? Abraço...