terça-feira, junho 06, 2006

Abordagens ao Alkantara (III): Encontros Imediatos III

Crítica

Encontros Imediatos III
04 Junho, vários locais, 11h-24h

Um dia atlético

por Pedro Manuel

Só se entra uma vez no mesmo edifício. Da segunda vez, ou lembramos o percurso ou descobrimos outro. Este foi um percurso possível pelos Encontros Imediatos III. Proximidade e imediatez definiram a geografia do tipo de projectos em função deste entendimento duplo da sensação de Encontro e Desencontro (neste caso, opondo-se à distância e à repetição).

Com uma programação assente em tipos de propostas pela efemeridade (não confundir com brevidade) e pela habitação de espaços não convencionais, a selecção de projectos privilegiou a performance e a instalação interactiva, colocando em paralelo projectos acabados e intuições experimentais. Mas, de facto, os espaços podiam ser mais não-convencionais. Estou a lembrar-me do Festival Internacional de Artes de Rua, em Palmela, ou do Caldas Late Night, nas Caldas da Rainha, onde a falta de espaços culturais determina a habitação de espaços não convencionais, acabando por intervir verdadeiramente com a comunidade local, perturbando a ordem pública e a pacatez bairrista. Assim, circunscritos a uma rede de espaços culturais habitados de forma não-convencional, os espectáculos acabam por ser dirigidos aos habitantes do seu próprio bairro, mesmo que desemparelhado pela cidade.

O prémio para a apresentação de Julie Nioche (Les sisyphe x 10), que interagia com os doentes mentais do Hospital Miguel Bombarda, talvez pressagie esse prazer de contacto e confronto com as comunidades não-artísticas, sinal de verdadeira integração. Nesse sentido, as zonas do Campo dos Mártires da Pátria e do Bairro Alto acabaram por corresponder melhor ao desejo de continuidade dos espaços e dos horários que cresce à medida que fazemos o percurso. O desenho do percurso obriga ao caminho e o caminho obriga à paisagem. De onde se conclui que a habitação dos espaços não se faz sem caminhar.


a family of performing pictures
geska helena andresson, robert brecevic

Três instalações interactivas determinadas pelo princípio do prazer lúdico, com imagens de pessoas reais caracterizadas por figurinos e posturas sociais. Numa das instalações, uma criança saltava de ecrã em ecrã de cada vez que o espectador se aproximava. Nas outras duas instalações, a aproximação do espectador determinava um movimento de uma personagem de cada vez, ou cair ou virar-se de frente para nós. Se num caso é a nossa presença que ameaça, no outro são as figuras que nos ameaçam ao virarem-se. O mais interessante da instalação, para além do prazer do jogo, é esta consciência de composição da imagem através da teatralidade das personagens, provocando o espectador a reagir com esse passo em direcção ao sensor.

_traces_
tom heene, yacine sebti

Instalação interactiva onde a proximidade do espectador ao sensor determina a velocidade de visualização de quatro níveis distância de uma imagem. As imagens são fotografias de diversos tipos de «símbolos de comunicação»: logos, stencils, marcas, tags. Ao aproximarmo-nos do sensor, colocado atrás do ecrã, a passagem das imagens abranda de ritmo. A instalação resulta na medida em que, tratando de sinalécticas, recusa–se a informar o espectador sobre as regras do jogo – à excepção de uma seta no chão apontando na direcção do ecrã. Isto determina a sensação de descoberta. Por outro lado, tematiza a noção de percurso e observação através da aproximação gradual do olhar em direcção aos sinais de comunicação Mas, após a descoberta do mecanismo, somos levados a pensar que as noções de sinaléctica e percurso poderiam ter sido ainda mais exploradas na instalação.

ela-não-é-francesa-ele-não-é-espanhol
inês jacques e eduardo raon

Uma cantora e um harpista expõem-se numa montra comercial onde interpretam jingles televisivos. A proposta é empática, sobretudo para quem reconhece as músicas. A estratégia deste zapping está no direccionamento dessa melancolia para a sua exposição mais comercial e prática, de que são sinal as etiquetas que marcam as roupas dos intérpretes. Pensada para habitar a montra da loja de uma marca de roupa que trabalha as mesmas noções de imagem e comércio como discursos da moda, a ocupação desta montra perde apenas em visibilidade, o que permitiria uma amplificação do conceito que, no entanto, não se perde. Uma proposta sedutora e irónica. hmmm danone.

lídia, a mulher-bomba
cláudio da silva

Começamos por ver uma mulher ao fundo da garagem. A mulher aproxima-se lentamente, atordoada. Este fantástico aproveitamento da relação de distância que o espaço da garagem proporcionava acaba por perder-se quando chega até junto do público, fazendo perder a sugestão que esse distanciamento provocava, por exemplo, a de uma mulher atingida por um atentado que erra pelo espaço murmurando frases sem sentido. A distância dá lugar à exposição, o murmúrio dá lugar ao discurso, e a errância dá lugar à marcação. A presença sem sentido, talvez mesmo non-sense que a personagem poderia suscitar, e a exploração de várias relações espaciais, cedem à tentação de comunicar um sentido, um discurso e uma personagem. Nesse sentido, a prótese transparente que sugere a gravidez, e que será onde a mulher carrega as bombas, acaba por perder a sua leitura poética.

les sisyphe x 10
julie nioche

A performance consistia em Julie Nioche saltar/dançar ao som do tema The end, dos The Doors, ao vivo. Isto era o que havia para ver. O que havia para intuir era a tematização do esgotamento como libertação de energias e como meio de comunicação entre os corpos. Esta comunicação era dirigida para uma partilha da experiência de cansaço através da dança, em função de uma certa comunidade. Assim, tratava-se de uma proposta de participação e não de observação, razão pela qual Nioche também chama a esta apresentação de workshop, orientando-o em função de comunidades específicas como os adolescentes ou, neste caso, os doentes mentais. Mas, no Hospital Miguel Bombarda, a performance acabou por articular ainda um outro sentido. Os doentes mentais acabaram por invadir o espaço da performance, dançando e saltando ao seu lado, mas nenhum dos espectadores o fez. A compreensão de que se tratava de um apelo à participação criou, então, uma tensão no público, a da não-participação, o remorso da observação. Se esta questão é extremamente valiosa para uma abordagem crítica, a ambiguidade da proposta estendeu-se à recepção do acontecimento, colocando em causa a eficácia do conceito.

streetwise II
anke blondé

A apresentação que mais se aproximou dos conceitos de proximidade e imediatez dos Encontros Imediatos era baseada na ideia de espontaneidade, de surpresa, dos acontecimentos improváveis que rompem o ritmo constante do quotidiano. Três mulheres, em pouco diferentes dos transeuntes do Jardim de Campo Santana, estavam por ali como qualquer outra pessoa. De tempos a tempos, juntavam-se e formavam um pequeno corpo de baile com coreografias baseadas nos gestos quotidianos daquele parque: falar ao telemóvel, espreguiçar o pescoço, alimentar os patos. Depois, voltavam a separar-se, perdendo a sua identidade coral e artística, para voltarem a ser transeuntes. Por vezes mais juntas ou mais distantes, o corpo de baile formava-se sem aviso pelo que o transeunte inesperado seria surpreendido, tal como o espectador que ali chegava com o jornal do Alkantara e sem perceber onde e quem estava a actuar. O próprio espectador acaba por se integrar neste esquema, sem ponto de observação preferencial, ele próprio reduzido a uma anónimo transeunte e inusitado observador. Uma proposta simples, em nada nova, mas ainda muito eficaz.

exercício
renata catambas, lúcia prancha

A extrema depuração da Sala Bocage, com as paredes e o chão de cimento, onde só as portas e as paredes interrompem a sensação de bunker, jogou a favor de uma performance silenciosa de preparação de um acontecimento: uma corrida. A preparação – que constituiu grande parte da performance – consistia em demarcar um rectângulo no chão a todo o comprimento da grande sala. Esta demarcação seria o terreno de jogo. Depois desta tarefa, as intérpretes colocaram-se em extremos opostos e, após um acordo feito de pequenos movimentos, precipitaram-se para a corrida ao longo das linhas. Depois pararam, retiraram as fitas do chão e voltaram à postura inicial mas trocando as posições. Esta sugestão da repetição e continuidade aponta para uma qualidade lúdica, de jogo ou competição, mas onde o que se torna determinante é a gestão do tempo de preparação conjunto para um breve momento de individualidade. A preparação do acontecimento é uma das estratégias preferenciais da performance e, em exercício, esse processo foi bem trabalhado com o rigor e seriedade de um ritual. Um exercício de contenção num espaço estanque.

identification
florent delval

Uma das melhores propostas dos Encontros Imediatos III, consistia numa inteligente ocupação do espaço das três catacumbas escuras e húmidas, por um percurso sugestivo em função da expectativa do espectador. Na primeira catacumba atravessamos um tablado instável com microfones por debaixo. Os sons dos nossos passos são amplificados numa coluna oculta atrás de um ecrã que emite uma forte luz azul e não nos deixa ver para trás dele onde, na verdade está uma fila de cadeiras vazias, cadeiras de espectador onde poderíamos experimentar uma certa sensação de invisibilidade e observação de outros espectadores. Na segunda catacumba, sentimos a presença de corpos em movimento. Mas, uma vez mais, um ecrã com luz azul impede-nos de distinguir o que se esconde por detrás. Então colocamos a mão à frente dos olhos e, pouco a pouco, vamos distinguindo corpos que nos observam, ou em movimento, coreografados sobre sons industriais. A luz do ecrã funciona aqui como uma quarta parede invertida. Finalmente, a terceira catacumba é ocupada por uma coluna que emite o som da sala anterior e em frente a esta coluna está um fila de cadeiras onde nos podemos sentar. Assim, o percurso implica uma passagem da visão à audição através de um percurso sugestivo, sem regras explícitas de utilização ou interpretação. No primeiro momento, estamos na posição de observados e produtores, nesse caso, de som. Ou, se nos sentarmos, de observadores. Depois, passamos a observadores que reconstituem a experiência do olhar através dos sons. Ou, uma vez que estamos iluminados, somos os observados. Na terceira sala, somos apenas auditores e, dos corpos e dos seus movimentos, resta apenas a memória.

Contexto:
ver foto-reportagem de José Luís Neves
ver sinopses de todas as propostas
ver texto sobre a vencedora Julie Nioche

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