domingo, junho 11, 2006

Abordagens ao Alkantara (V): Dentro de mim outra ilha

Crítica de dança

Dentro de mim outra ilha
de Panaibra Gabriel/CulturArte
Maria Matos - Teatro Municipal
10 Junho, 19h
sala quase cheia

Espaço livre

Das várias pontes que o Alkantara estabeleceu, uma leva-nos até Moçambique e à associação CulturArte, da responsabilidade do coreógrafo Panaibra Gabriel. Trata-se de um projecto de dimensão social que busca uma forma de criação que não assente na perpetuação dos códigos de linguagem coreográfica ritualista, dando ao movimento o lado artístico (à falta de melhor termo) que lhe permite estabelecer diálogos directos com realidades de outros países. E isso prova-se pela extensa digressão internacional que já lhes valeu prémios em França.

O aspecto mais importante, e que importa ressalvar, é a noção de que este movimento não procura uma inscrição na dança contemporânea europeia e ocidental, nem tão pouco numa reformulação das tradições e rituais moçambicanos. Parte claramente da intuição e da liberdade de fazer em nome de uma urgência que se relaciona, obviamente, com as dificuldades de criação em Moçambique. Se aos intérpretes de Dentro de mim outra ilha se podem apontar fragilidades, nomeadamente na amplitude do movimento, tal não é fundamental para se perceber no seu desempenho uma honestidade que sobreleva corpo, espaço e tempo. É essa outra dimensão, a ultrapassagem de uma fronteira identitária e reconhecível, que justifica o espectáculo, libertando-o do pré-conceito da formatação.

Por isso não é muito relevante tentar perceber se o que apresentam é parte ou representação da identidade moçambicana. E é menos ainda importante descodificar em cada gesto a metáfora que sustenta cada sequência. Fala-se aqui de guerra, de seca, de paixão, religião, rituais, fome e exclusão social. Fala-se do que seria de esperar de um país atravessado por seculares crises e misérias inimagináveis. Mas querer insistir no lado piegas e sentimental desta realidade é carregar o tom num espectáculo que, precisamente, integra essa realidade para a re-imaginar. A ilha que criam, pessoal e colectiva, é o território de esperança que a própria arte pode propiciar. E isso não é moçambicano, é universal.

Há, naturalmente, aspectos simbólicos, como a água que é feita de areia, e na qual todos se banham, ou a chuva, com que termina o espectáculo, que surge depois de uma dança colectiva. Mas também há espaço para ver nos movimentos uma abertura ao novo, ao indizível, ao intraduzível. Há sobretudo espaço para ler em cada um dos intérpretes a vontade de resgatarem da dura realidade uma prática que não precisa de regras para existir. O espectáculo torna-se assim, e não pela recepção condicionada por um olhar antropológico e burguês, um hino de liberdade. Sem regras, sem expectativas. A ser simplesmente, um “eu” dentro de uma ilha. Há maior liberdade que essa?

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