Crítica de teatro
pelo Teatro Praga
Picadeiro do Museu da Politécnica
02 Junho, 00h
sala cheia
The show is about to begin…

No total são mais de setenta quadros (cada um com um nome que identifica uma ideia: início, plágio, alteridade, protesto, novo ...) cuja estrutura formal parte da ópera Os Mestres Cantores de Nuremberg, de Wagner, entre outras definições uma parábola sobre a arte. Para o Teatro Praga a peça também quer ser uma parábola sobre a criação e o acto criativo. Daí ao caos o passo é curto, coisa que lhes é fácil atingir e neste espectáculo testa novo limite.
Seria exaustivo discorrer sobre a quantidade de imagens que criam (há de tudo para todos os gostos, é um sonho, avisaram), até porque muitas das imagens apresentadas, não sendo supérfluas contêm também uma dimensão descartável (é o que valida a ideia de podermos entrar e sair quando quisermos). Uma espécie de paisagem cénica em que as cenas (os Masters) se vão sucedendo a um ritmo vertiginoso, barroco e excessivo, acompanhadas por uma banda-sonora por vezes opressiva, outras vezes instigadora, mas, também ela, a contribuir para uma mole visual que nos deixa meio dormentes. Seis horas dá para muita coisa mas não dá sono. Algumas vezes é-nos indiferente o que se passa (como se estivéssemos sentados num banco de jardim e olhássemos, at random, para o que nos rodeia), outras vezes irritamo-nos (e podemos sair – os Praga finalmente a serem democráticos), há alturas em que somos hipnotizados pelas ideias e execução das mesmas, a maior parte das vezes querermos perceber até onde é que isto tudo quer chegar. É pop, é retro, é kitsch, é chiq, é mau, é bom, é contemporâneo e anacrónico, é ridículo e absurdo… é teatro. No fundo, vale tudo. Valerá?
Não há blocos temáticos nem sequências organizadas para sugerirem uma dramaturgia, mas quadros que apontam para linhas facilmente reconhecíveis no percurso da companhia: a identidade do teatro, a responsabilidade dos envolvidos, a fronteira da definição, o valor da imagem, a retórica dos discursos, a manipulação das referências, o confronto actor/personagem ou a contaminação por outras linguagens que não as performativas (no caso é a literatura que tende a dominar). Tudo isto serve a ideia de um teatro que se auto-questiona no momento em que acontece. Ou seja, força-se a ideia de um teatro actuante e pensante que quer mostrar a sua validade enquanto existe e não protegido pela fixação à posteriori.
O espectáculo vive de regras e armadilhas que querem condicionar o resultado, sendo a duração a mais evidente, já que faz confundir, à medida que as horas avançam, se o formato se justifica pelo conteúdo ou o sustenta. Convém lembrar o alerta de Baudelaire acerca do tempo: «Souviens-toi que le Temps est un joueur avide/ qui gagne sans trincher, à tout coup ! c’est la loi.» Ou seja, o tempo vence sempre, não permitindo tudo, ou melhor, expondo tudo. Se existe a dúvida é porque, dando-se a possibilidade de entrar e sair em qualquer altura, não necessitando o espectador de contexto, o espectáculo deveria apresentar uma coerência e sustentabilidade permanentes. Coisa que nem sempre é verdade (e podendo o espectador zappar, mais relevante se torna a necessidade de insistir num equilíbrio cénico).
Por isso mesmo é um pressuposto errado admitir-se (na verdade, ceder) que em seis horas nem tudo tem que ser coerente ou pode estar ao mesmo nível. Já há auto-complacência e auto-legitimação suficientes neste discurso praguiano para permitir algo menos que um equilíbrio no espectáculo (afinal são eles que auto-atribuem medalhas no fim de cada quadro). Há que partir do princípio que ninguém apresenta nada sem estar plenamente consciente da solidez do que dá a ver. Ainda que esta ideia comporte uma certa retórica, são os próprios Praga que colocam a fasquia demasiado alta, não por se estarem durante tanto tempo em cena, mas porque têm nos últimos tempos apresentado sucessivas peças, quase sem deixar respirar a memória da anterior. Por isso mesmo, sendo um espectáculo desequilibrado (porque é, resta saber se essa era uma dimensão já prevista) é, provavelmente, a explosão de que todos estavam à espera. E era a única solução possível para perceber o que se vai seguir.
O que se questiona em Discotheater (o seu grande trunfo) é a solidez argumentativa de uma companhia que arrepia caminho no contexto nacional, apresentando espectáculos que estabelecem diálogos mais evidentes com exemplos estrangeiros (os Forced Entertainment são o lugar comum da referência quando se quer dar um exemplo, mas eu falaria em Jérôme Bel – a fórmula dentro da fórmula – e Armin Petras, Thomas Ostermeier ou Jacob Wren, mesmo que estes partam sempre do texto e os Praga tenham, de há alguns anos a esta parte, abandonado essa matriz enquanto fonte única) do que com a realidade nacional. Isto não pressupõe nem obriga a uma originalidade, mas à consciencialização (no público sobretudo) desse zeitgeist, o espírito do tempo. Que se espera então de uma companhia de teatro contemporâneo e que dá ela a ver?
Neste teatro-mosaico, o Teatro Praga fala (mesmo quando hermeticamente) de política, sociedade de consumo, entretenimento, globalização, amor, jogo ou manipulação (em qualquer nível). Ou seja, fala do que o rodeia. Fala de si mesmo (são aqui claras, e ainda bem, as linhas traçadas por elementos como André e. Teodósio e Pedro Penim – sobretudo se pensarmos nos espectáculos imediatamente anteriores, Super Gorila e Eurovision, respectivamente) e dos outros (no já tradicional, e algo estafado, jogo comparativo de nomes e referências). Fala de teatro, de filosofia, de retórica, de literatura, de música e de arte. Faz um retrato (não tão implacável e mordaz quanto se enunciava, mas suficientemente provocatório) de um modo de pensar o teatro que se não os aniquila, torna-os mais fortes.
Mesmo podendo criar os maiores anti-corpos, Discotheater é um espectáculo que não nos deixa indiferentes (gostemos ou não) e a partir do qual se podem começar a desenhar as linhas que vão fazer o Teatro Praga dos anos mais próximos. Arrisco: o desenvolvimento de uma definição de teatro menos preocupada com a legibilidade e mais atenta à responsabilidade social e artística de uma prática que tende ao facilitismo, a procura de um lugar no contexto nacional que radicalizará (ainda mais) opiniões e, sobretudo, a consciência de que o teatro, sendo efémero, obriga a um recomeçar constante que (e é essa a lição que se pode tirar de Discotheater) necessita de fechar portas e fazer opções. Neste opus magnum de seis horas pode ter havido tempo para tudo, a partir de agora o tudo pode ser fatal. E, por isso mesmo, muito mais interessante.
1 comentário:
Só agora consegui ler a crítica ao Discotheater (e ao resto).Tanta impaciência na altura e afinal...Ajudou-me a organizar ideias,agrada-me sobretudo o último parágrafo..É bom ter sempre uma noção de futuro...
PS:O link para o diálogo entre Teatro Praga e Forced Entertainment não está correcto..
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