Crítica
A identidade como ponto de partida
Alfama, 03 Junho, 17h00
Casa dos Dias da Água, 03 Junho, 19h00
Armazém do Hospital Miguel Bombarda, 03 Junho, 21h00
Uma das hipóteses de abordagem às propostas apresentadas no âmbito dos Encontros Lisboa 2005-2006 é a identidade. Identidade dos criadores, do próprio Alkantara festival e Panorama Rio Dança, que os pensaram, e dos objectos que surgiram sustentados na ideia de colaboração e transferência artística. Durante cerca de um ano, e acompanhados por Mark Deputter, Nayse Lopes e Bojana Cvejic criadores portugueses (Miguel Pereira, Filipa Francisco, Ana Borralho e João Galante) juntaram-se a artistas brasileiros (Gustavo Ciríaco, Dani Lima, e Claudia Muller), austríacos (Andrea Sonnberger), do Egipto (Karima Mansour), Espanha (Cristina Blanco e Idoia Zabaleta), Sérvia (Soja Lotker), e Japão (Atsushi Nishijima) para a criação de objectos performáticos que pensassem estratégias e processos de criação. O resultado destas cartas brancas está a ser apresentado no Alkantara festival, depois de várias fases internas de residências, apresentações informais e muita discussão.
Algumas destas propostas ocupam armazéns, apartamentos ou salas de espectáculos, mas há também aquelas que saem para a rua e transformam-na num palco convencional, onde os papéis de espectador e intérprete são permanentemente questionados.
É o caso de Aqui enquanto caminhamos, de Gustavo Ciríaco e Andrea Sonnberger que convidam um pequeno grupo a acompanhá-los, em silêncio pelas ruas apertadas e labirínticas de Alfama, dentro de um elástico que cria uma mole humana duplamente performática. Primeiro os próprios intérpretes que guiam os espectadores, controlando e manipulando as suas acções através de um percurso enigmático, entre o peddy-paper e o deambular perdido; segundo para os espectadores que se tornam também eles intérpretes para os habitantes do bairro. Trata-se de uma proposta de ocupação urbana, não necessariamente site-specific, uma vez que não lida directamente com a realidade do bairro de Alfama. É uma proposta de observação que tem a inteligência de não acrescentar nada ao pitoresco do bairro que, visto sob o prisma do espectáculo, adquire dimensões surrealistas.
Surrealista ou surrealizante é também um termo que se pode aplicar a Dueto, de Filipa Francisco e Idoia Zabaleta. As duas performers convidam o espectador a entrar dentro do processo criativo, seguindo um pouco a ideia de Derrida de que o processo é já o espectáculo. As cartas que foram trocando durante o período de trabalho servem a dramaturgia do exercício e duplicam-se no espaço do Hospital Miguel Bombarda através da rede de fios vermelhos (o grego fil rouge que uniria todas as coisas) que cose intérpretes, espaço, ideias e público. Apropriando-se do conceito de alteridade, proporcionam uma viagem que é uma alteração de papéis. Tudo pode ser outra coisa e nada é realmente líquido. Entre as histórias que vão contando uma à outra e as expectativas que criaram durante o processo vão tecendo uma filigrânica teia sem resolução aparente. No fim, desaparecem e não voltam, dando ao espectáculo um sentido travo de descrença.
Descrença, ou se quisermos, manipulação da crença, é o mote para Caixa negra, Caja branca, que Claudia Muller e Cristina Blanco apresentam na Casa dos Dias da Água, onde se fala de um terceiro ausente. Se a performer brasileira desenha no chão o mapa do espectáculo, desde o lugar onde o espectador se deve sentar, distribuído a partir de regras um tanto inusitadas e mesmo aleatórias, aos objectos a utilizar, movimentos que a intérprete ausente não fará e projecções do que pode acontecer, a criadora espanhola dá conta do que foi o espectáculo, através da recriação de algumas cenas. Na verdade, entre uma coisa e outra, o espectáculo nunca existe. Primeiro porque com Claudia Muller é projectado, segundo porque com Cristina Blanco é descrito retrospectivamente. É uma combinação curiosa de dois pontos de vista sobre um processo criativo, deixando quem vê na posição desconfortável de dúvida. O espectáculo, que vive da ilusão, ganha pelo modo com cada uma das criadoras estabelece imediata empatia com o público que, perdido entre essa coisa e a outra, rapidamente se esquece do que viu. O que, na verdade, não é um problema em si mesmo. Creio mesmo que essa intenção estava incluída na proposta.
Em comum os três espectáculos apresentam soluções para uma possível ideia de partilha: observação, paralelo e justaposição. São propostas frágeis, circunscritas no tempo e no espaço mas suficientemente pertinentes para questionar a identidade da criação. Fica-se, no entanto, sem saber o que pertence a quem. E, no limite, se até isso é relevante.
Contexto:
Os espectáculos serão apresentados até dia 10. Dias 11 e 12 decorre uma conversa na Casa dos Dias da Água com todos os participantes. Mais informações em www.alkantarafestival.pt
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