de Olga Roriz
hoje e amanhã, 21h30
Teatro Camões, Lisboa
O palco invadido por um imenso cromeleque em tamanho natural denuncia estarmos em território de celebração e sacrifício. Uma obra coral (bacantiana certamente) onde há corpos que se cruzam em pares desencontrados e uma estrutura que obriga à recusa da linearidade. Olga Roriz cria um espectáculo onde o amor é servido num exercício que não aparenta ser outra coisa senão um festim emocional.
Propõe-se uma leitura do amor como ritual a celebrar, onde o binómio tragicidade/comicidade permite a criação de uma estrutura, sem a necessidade da afirmação programática para além do universo criativo e referencial da coreógrafa. As várias sequências que compõem a peça contribuem para um todo onde há lugar para o habitual masoquismo, entrega passional, jogos emocionais e o transe amoroso. Mas também margem para uma ideia de felicidade.
As sequências, com a duração de cada uma das músicas utilizadas (o que estende algumas para lá da sua densidade dramatúrgica e fulgor coreográfico), sustentam-se num conjunto de movimentos que se repetem ao longo do espectáculo. Esta base, que toma diferentes significados consoante a ambiência que se quer instalar (a procura, a tensão sexual, a descrença, o ‘sequestro emocional’ ou a negligência), sublinha o universo da autora e relaciona-se tanto com o reconhecimento pessoal de situações comuns, como com o que evoca de outros espectáculos (fragmentação das acções, interrupção de discursos, metáforas biográficas, sequências colectivas à boca de cena ou interacção com o espectador). O que surpreende é que o barroco característico de Roriz (que raiou o superficialismo coreográfico em Jump-up-and-kiss-me, 2003, do qual este espectáculo parece ser upgrade e espelho directo) é aqui substituído por uma respiração, muito em virtude da selecção sonora, onde pontua Mahler, Arvo Pärt ou Sílvio Rodrigues.
Há, inclusive, momentos em que são fornecidas linhas claras para a apreensão do espectáculo. É o caso de Catarina Câmara num envolvente exercício de desconstrução do percurso emocional, ao dizer o único texto da peça, mesmo quando o espaço dado a cada um dos intérpretes é limitado também na criação de personagens. Situação posta em causa com a tentativa de prolongamento do drag-queen de Pedro Cal, incapaz de sustentar o melodramatismo com que abre o espectáculo.
Nem tudo o que se passa em palco é relevante ou equilibrado, mas a mais-valia desta celebração pagã é não querer correr o risco de firmar, de modo peremptório, um discurso sobre os afectos ou a falta deles. É, sobretudo, um espectáculo sem conclusão e consciente disso. O que é uma vantagem num tecido criativo onde tantos se preocupam com um sentido para os espectáculos, mas menos em como o transmitir.
Em resumo
Uma proposta surpreendentemente menos barroca e por isso mais pertinente
[texto publicado no jornal PÚBLICO a 20 Outubro 2005]
tlf. 21 892 34 77 (bilheteira)
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