quarta-feira, maio 17, 2006

Circolando: Um caminho que se faz... à volta de

por Mónica Guerreiro

Quarto Interior. foto: João Vladimiro


Quando a alguém atrai a ideia de circo, é preciso saber do que se fala. Porque o processo de redefinição que o espectáculo a que por simplificação chamamos circo tem vindo a atravessar desde os anos 70 implica, para o bem e para o mal, nomenclaturas como “tradicional”, “novo”, “géneros”, “multidisciplinaridade”, “fusão”, “cruzamento”, “revisão”. O circo, enquanto noção e enquanto fenómeno artístico, é hoje muitas coisas diferentes: e, se a (entretanto tornada) clássica divisão entre “o novo” e “o outro” pode ajudar a definir alguns territórios, não é porém menos verdade que a deriva conceptual tem o perigo de deixar passar em branco importantes nuances. Porque o caldeirão parece ser sempre daqueles em que tudo cabe e nada é impertinente: a música (os rufos da antecipação ou os violinos da nostalgia tantas vezes levados pelos palhaços), os animais (a ferocidade acirrada e domada ou a mera sugestão tigresse, na utilização que faz, por exemplo, Johann Le Guillerm), a acrobacia (o virtuosismo impressionante ou a graciosidade da sua evocação), a dança sobre cordas e o teatro clown e a manipulação de objectos e o trapézio e a pista e a tenda e tudo o que se queira, podem habitar um espaço comummente vivido e referido como circo.

Mas a construção do circo, que pode configurar o mínimo denominador comum entre todos quantos se afirmam atraídos pela ideia de circo, é provavelmente algo menos passível de ser confinado por palavras. Pode ser a magia trazida pelo nomadismo das famílias circenses, a intermitência e liberdade sugeridas por um particular estilo de vida; pode ser a conjugação não hierarquizada de expressões artísticas num habitat potenciado pela tipologia circular e pelo cruzamento de olhares; pode ser a sensação de assombro suscitada pelas proezas aparentemente impossíveis que têm lugar naquele universo de cor, felicidade e aplausos. Contudo, quando André Braga e Cláudia Figueiredo, directores artísticos da Circolando, falam da ideia de circo[1], é e não é disto que falam.

A cooperativa Circolando nasceu como um projecto colectivo com vocação para a intersecção disciplinar, no sentido em que lhe dá o termo “transdisciplinaridade” – contaminação entre expressões artísticas cujo alcance é a própria superação dos limites de cada linguagem, no sentido de produzir novas possibilidades de expressão. No fundo desta noção de transformação está a aventura circense, enquanto umbrela para exercícios de domínio das diversas técnicas convocadas pelas artes do espectáculo. A Circolando começou por investir numa certa ideia de circo enquanto proposta metodológica: não o espectáculo de circo, mas o espectáculo construído através da aproximação que o circo faz de todas as artes.

As chamadas artes circenses mais não são do que uma importação e reformulação de inúmeras (e, em alguns casos, imemoriais) práticas sociais e artísticas, desenvolvidas até ao estatuto de disciplinas autónomas – mas à Circolando interessa mais aquela condição mestiça, a impureza que transporta a hipótese do cruzamento continuado. Desse modo, a especialização técnica não é necessariamente um caminho para o virtuosismo, mas um caminho para o domínio de mais e mais faculdades que não estão sujeitas à demonstração da destreza. Se, no início, a companhia se situava predominantemente no novo circo (até por necessidade de classificação), o que hoje acontece – e são os próprios que primeiro o diagnosticam – é a prevalência das formas híbridas do teatro de imagens. As experiências da Circolando integram o teatro físico, a dança, o teatro de objectos, as técnicas circenses, a música, o vídeo e as artes plásticas. Ir ao circo para lá buscar “a ideia”, os formatos da representação e as técnicas que a traduzem; e vir do circo para imaginar espectáculos fundados numa estética própria, com uma dramaturgia que escapa à lógica narrativa mas impõe propostas de leitura poética e sensitiva e que são potencialmente acedidos por todos os públicos.

Essa vocação abrangente é legível também nas motivações conceptuais do colectivo: espectáculos desenvolvidos em continuidade, a cuja estreia não corresponde a finalização do processo criativo mas sim o reinício do questionamento da consecução dos objectivos. A recriação é, assim, uma forma de aperfeiçoamento e afinação das obras no momento em que são postas à prova: na estrada. Ainda, remete para aquela ideia o envolvimento de todos os profissionais na polivalência das tarefas exigidas, sendo a criação colectiva a forma mais fiel de os categorizar. Mas mesmo o âmbito da participação de cada um é uma formalidade que, tantas vezes, não corresponde ao que acontece: ninguém pode dizer que não é encenador, dramaturgista ou cenógrafo, porque o processo criativo, fundado na improvisação sobre o tema escolhido, faz de todos criativos e executantes. Os sete elementos da equipa permanente são acompanhados por duas dezenas de colaboradores (técnicos de construção, maquinaria, luz e som, actores, criadores de projectos satélite, músicos, desenhadores de som e de luz, figurinistas, consultores jurídicos, agentes internacionais...) na construção das ficções oníricas pensadas para convidar o público a ser, ele próprio, criativo. Explicita a companhia em texto recente: histórias contadas sem palavras que se querem livremente inventadas por um espectador contemplativo; histórias que não pretendem oferecer um sentido, mas despertar todos os sentidos, com imagens, músicas, cheiros, emoções...

A montante e a jusante das considerações acima apontadas a respeito da sua situação conceptual, as criações da Circolando são exercícios poéticos que exprimem um mundo observado com pudor e inocência, na demanda de uma natureza humana encantada pelo sonho e pela beleza. A companhia recorre a imaginários de uma vivência rural e suburbana, apela a estados de alma e a um trabalho de fisicalidade claramente identificados com o mundo laboral e com a infância, e depura uma linguagem cénica original, preenchida de sugestões. A utilização ostensiva dos materiais plásticos e a concepção das criações para espaços ao ar livre dita um trabalho alicerçado no potencial imagético: terra, água, cordas, laranjas, uma carroça, tinas de alumínio, uma chuva de folhas, constituem elementos cénicos imensamente líricos (neste caso, em Giroflé).

De igual modo, o apuramento plástico não dispensa um aprofundado sentido dramatúrgico sobre as realidades retratadas: em Cavaterra, abordagem ao universo mineiro, à pesquisa no terreno (visitas às minas desactivadas de Portugal) seguiu-se a pesquisa de textos e imagens em duas vias, uma factual, sobre o trabalho nas minas – ferramentas e métodos de extracção, características dos minérios, doenças dos mineiros, relato de histórias, acidentes e desabamentos – e outra metafórica, sobre as sensações associadas à vida nas entranhas da terra – o negro, a solidão, a morte. Este trabalho alimentou uma terceira fase de pesquisa, sobre o corpo dos intérpretes: as rotinas de trabalho que imprimem marcas físicas em corpos que se tornam deformados, à força de tanto cavar, e carregar. As pedras, as enxadas e as picaretas serviram para exercícios de dança e de manipulação de objectos, a queda e o contacto-improvisação estiveram presentes enquanto treino e aprendizagem física.

Esta peça, a única que a companhia concebeu para um espaço de apresentação convencional, é exemplar pela forma como representou a evolução de um vocabulário cénico de bastante complexidade: recordemos, a esse propósito, a estreia do grupo em Caixa Insólita, espectáculo de rua habitado por inusitadas personagens saídas de uma casa de ferrugem, instrumentistas e acrobatas recriando um contexto suburbano (inspirado em Buñuel), para a concepção do qual fizeram várias incursões a sucatas e ferros-velhos. Este trabalho foi premiado pelo Festival Imaginarius / Sete Sóis Sete Luas, em 2001, na categoria de melhor produção nacional. Giroflé, o mais afamado e solicitado dos seus projectos, arrecadou em 2003 o prémio de reposição do concurso Teatro da Década, atribuído pelo Clube Português de Artes e Ideias.

Caixa Insólita, Rabecas, Giroflé, Charanga, Cavaterra e, agora, Quarto Interior, completam o reportório da Circolando. Este ano vai ser possível encontrá-los a circular por aí: depois de Toulouse (França) e do Porto, os seus espectáculos estarão em Beja e em Faro, em Guimarães e em Espanha (Valladolid e San Sebastien). Crescentemente, a itinerância internacional da Circolando tem vindo a apresentá-los a públicos diversos: em 2005, deram 23 espectáculos em Portugal e 31 no estrangeiro, o que é bem expressivo da singularidade da sua linguagem, mesmo nos sobrelotados fóruns internacionais. Paralelamente à criação destes objectos, vêm ainda produzindo pequenos projectos cujo objecto final se desvia do formato espectáculo: performance, instalação e vídeo constituem novos campos de expressão e experimentação que a companhia explora mais amiúde no tempo recente. Desenvolvem oficinas de formação em manipulação de marionetas, movimento ou música, assegurando que a sua experiência é capitalizada noutras vertentes.

O que talvez possa parecer surpreendente, à luz das conquistas do grupo, é o facto de estarem activos apenas desde 1999; tão admirável quanto o facto de, em sete anos, permanecerem fiéis à premissa de origem, que lhes inspirou o nome. Ir ao circo e vir do circo? Entre as acepções [2] do verbo circular (conjugado no gerúndio, que exprime precisamente o carácter continuado da acção) estão: formar círculo(s) em torno de alguma coisa; rodear, cercar; mover-se circularmente; dar a volta completa; percorrer sem obstáculos um certo circuito e retornar ao ponto inicial; deslocar-se normalmente em diversas direcções; transitar; percorrer diferentes lugares; viajar; movimentar-se entre pessoas; passar de mão em mão ou de boca em boca; ser divulgado, tornar-se conhecido; difundir-se. A Circolando experimenta em todas as direcções.


[1] Em entrevista a Isabel Alves Costa e António Ramos, in Cadernos do Rivoli 2, Porto, 2004.
[2] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.


[texto publicado no programa do espectáculo Quarto Interior, do Circolando, em cena no Teatro Carlos Alberto, Porto, até 20 de Maio. Gentilmente cedido pela autora e pelo Teatro Nacional S. João, aos quais se agradece.]

Quarto Interior criação >> ANDRÉ BRAGA, ANTÓNIO JÚLIO, CLÁUDIA FIGUEIREDO direcção artística >> ANDRÉ BRAGA, CLÁUDIA FIGUEIREDO dramaturgia >> CLÁUDIA FIGUEIREDO direcção >> ANDRÉ BRAGA composição musical >> ALFREDO TEIXEIRA figurinos >> RUTE MOREDA desenho de luz >> CRISTÓVÃO CUNHA desenho de som >> HARALD KUHLMANN interpretação >> ANDRÉ BRAGA, ANTÓNIO JÚLIO co-produção >> CIRCOLANDO, TNSJ

Teatro Carlos Alberto , Porto, 11 a 20 de Maio

3 comentários:

Anónimo disse...

A passagem "depura uma linguagem cénica original, preenchida de sugestões" acaba por reflectir o meu maior problema com esta companhia: a aparente incapacidade de aprofundarem e tornarem consequentes as boas ideias que têm.
Ficam-se assim por "sugestões", que fazem bonito, mas dificilmente incomodam ou ficam na memória.

Anónimo disse...

eu não preciso que me incomodem nem que os espectáculos me fiquem na memória...

Anónimo disse...

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