Danças de Kandy
Peter Surasena Dance Company
Culturgest, 02 Março 2006
21h30
Lotação Esgotada
Existe no Ocidente uma posição relutante em reconhecer nas disciplinas artísticas uma base performática que consagre a dimensão ritualista da arte. No caso de Danças de Kandy, somos mais facilmente atraídos pelo exotismo da proposta - uma adequação ao palco de rituais religiosos e folclóricos do Sri Lanka que remontam ao século XVI -, que pelo modo como a recepção destes espectáculos contribui para alargar a percepção da dança como arte capaz de concentrar diversos planos: simbólico, religioso, prospectivo, intervencionista. A abertura a outras realidades obriga a um esforço de desconstrução que, no limite, poderá pôr em causa a própria criação artística e o modo como representamos "o outro".
O programa é composto por treze vannamas (danças teatralizadas), dançadas alternada e exclusivamente por homens ou mulheres. Quase todas representam animais (borboleta, cobra, elefante), simbolizam valores (prosperidade, fertilidade) ou recriam o quotidiano (as aldeãs no rio ou a ajudar os maridos nas colheitas). Há ainda danças que são apenas executadas pelos percussionistas, uma vez que os tambores (feitos de pele de macaco, boi e veado) marcam o ritmo e estão ligados à santidade.
Estas breves danças descritivas (vannama também significa descrever) são parte de uma imensa procissão que todos os anos se realiza em Agosto, durante o festival religioso Perahera onde se venera o dente de Buda, depositado no Dalada Maligava (Templo do Dente). Os movimentos hiper-simples servem os rituais religiosos e não têm que ver com o modo como as pessoas se movem, mas com o que as move. Esta deslocação da sugestão para a intenção liberta o corpo de uma finitude, transformando-o em objecto ao serviço de uma causa. O prazer de dançar e o desejo de chegar mais perto das divindades transforma Danças de Kandy num exercício ascético.
Isso é evidente, por exemplo, nas três danças feitas por Mudadeniye Gedara Peter Surasena, o director artístico da companhia. As suas representações do movimento da borboleta (Samanala Vannama) ou de dois excertos da cerimónia folclórica Kohomba Kankariya - Mal Padaya, onde dança com uma fronde de côco espalhando as sementes pelo palco, e Ves, em que aparece vestido com o que se supõe serem as sumptuosas vestes do Rei - são momentos de hipnotismo e rendição não só à energia, perícia, delicadeza e secretismo deste intérprete sexagenário, mas também ao peso de uma tradição que resistiu às pressões de portugueses, holandeses e ingleses. Há um sentido de libertação nestas vannamas que não se aproxima em nada dos discursos criativos simbólicos e estruturados da contemporaneidade.
Razão pela qual, descontextualizadas da realidade cingalesa, estas sequências se apresentam como uma oportunidade para observar a beleza do gesto primário e não especulativo composto por movimentos bruscos que se intensificam à medida que se aproximam do fim. O espectáculo destaca-se também pelo modo como evita esse folclore que agradaria à fanática plateia ocidental. Não procura recriar a procissão, que comporta elefantes e centenas de participantes, e a atenção concentra-se no intérprete que força a deslocação do altar para a plateia. Quase como se a divindade a ser adorada fosse o espectador. A deslocação ritualiza também o acto de observar, preso que fica ao seu próprio modo de pensar a arte.
[publicado hoje no jornal PÚBLICO]
1 comentário:
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