segunda-feira, março 06, 2006

O lugar do ritual

Crítica de Dança
Danças de Kandy
Peter Surasena Dance Company
Culturgest, 02 Março 2006
21h30
Lotação Esgotada

Existe no Ocidente uma posição relutante em reconhecer nas disciplinas artísticas uma base performática que consagre a dimensão ritualista da arte. No caso de Danças de Kandy, somos mais facilmente atraídos pelo exotismo da proposta - uma adequação ao palco de rituais religiosos e folclóricos do Sri Lanka que remontam ao século XVI -, que pelo modo como a recepção destes espectáculos contribui para alargar a percepção da dança como arte capaz de concentrar diversos planos: simbólico, religioso, prospectivo, intervencionista. A abertura a outras realidades obriga a um esforço de desconstrução que, no limite, poderá pôr em causa a própria criação artística e o modo como representamos "o outro".

O programa é composto por treze vannamas (danças teatralizadas), dançadas alternada e exclusivamente por homens ou mulheres. Quase todas representam animais (borboleta, cobra, elefante), simbolizam valores (prosperidade, fertilidade) ou recriam o quotidiano (as aldeãs no rio ou a ajudar os maridos nas colheitas). Há ainda danças que são apenas executadas pelos percussionistas, uma vez que os tambores (feitos de pele de macaco, boi e veado) marcam o ritmo e estão ligados à santidade.

Estas breves danças descritivas (vannama também significa descrever) são parte de uma imensa procissão que todos os anos se realiza em Agosto, durante o festival religioso Perahera onde se venera o dente de Buda, depositado no Dalada Maligava (Templo do Dente). Os movimentos hiper-simples servem os rituais religiosos e não têm que ver com o modo como as pessoas se movem, mas com o que as move. Esta deslocação da sugestão para a intenção liberta o corpo de uma finitude, transformando-o em objecto ao serviço de uma causa. O prazer de dançar e o desejo de chegar mais perto das divindades transforma Danças de Kandy num exercício ascético.

Isso é evidente, por exemplo, nas três danças feitas por Mudadeniye Gedara Peter Surasena, o director artístico da companhia. As suas representações do movimento da borboleta (Samanala Vannama) ou de dois excertos da cerimónia folclórica Kohomba Kankariya - Mal Padaya, onde dança com uma fronde de côco espalhando as sementes pelo palco, e Ves, em que aparece vestido com o que se supõe serem as sumptuosas vestes do Rei - são momentos de hipnotismo e rendição não só à energia, perícia, delicadeza e secretismo deste intérprete sexagenário, mas também ao peso de uma tradição que resistiu às pressões de portugueses, holandeses e ingleses. Há um sentido de libertação nestas vannamas que não se aproxima em nada dos discursos criativos simbólicos e estruturados da contemporaneidade.

Razão pela qual, descontextualizadas da realidade cingalesa, estas sequências se apresentam como uma oportunidade para observar a beleza do gesto primário e não especulativo composto por movimentos bruscos que se intensificam à medida que se aproximam do fim. O espectáculo destaca-se também pelo modo como evita esse folclore que agradaria à fanática plateia ocidental. Não procura recriar a procissão, que comporta elefantes e centenas de participantes, e a atenção concentra-se no intérprete que força a deslocação do altar para a plateia. Quase como se a divindade a ser adorada fosse o espectador. A deslocação ritualiza também o acto de observar, preso que fica ao seu próprio modo de pensar a arte.

[publicado hoje no jornal PÚBLICO]

1 comentário:

Anónimo disse...

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