sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Dossier Marselha (II)

A casa de Geneviève Sorin
Vinte anos não foram suficientes para Geneviève Sorin atravessar o Mediterrâneo e voltar a entrar na terra de onde partiu, a Argélia. A coreógrafa e intérprete argelina, que há trinta e sete anos usa o corpo para “estabelecer uma relação directa com ‘as coisas’ no plano humano”, instalou-se em Marselha no início dos anos 80, depois de, em Paris, ter feito parte do movimento emergente da dança contemporânea nos anos setenta. Tinha como objectivo voltar a relacionar-se com esse lugar, agora confundido entre nostalgia e sentimento de perda, mas o mais próximo que chegou foi Marselha. E aí encontrou a distância necessária para observar um território ainda sombrio no imaginário francês. Sorin descobriu a necessidade de “inscrever a arte num tecido social”, e resistiu a todos aqueles que lhe diziam que as condições de criação e produção não lhe iriam permitir desenvolver-se.

Este princípio de resistência e adaptação está presente em muito do seu trabalho, que se divide em mais de vinte peças coreográficas e musicais, uma peça radiofónica e dois discos. A coreógrafa parte de uma constante observação do quotidiano e do potencial artístico da realidade imediata, sustentando-se numa exploração da improvisação, sempre à beira do precipício e onde o resultado final não é mais que uma etapa num percurso atípico e dos mais sólidos na cena marselhesa.

A sua última peça é prova disso mesmo. ¾ Face, estreada no passado dia 12 de Janeiro no La Minoterie – Théâtre de la Joliette, no âmbito do Marseille Objectif Danse – uma estrutura de produção de dança existente em Marselha há mais de uma dezena de anos e que tem sido responsável por um constante apelo à experimentação, à consolidação de nomes e processos não só franceses como internacionais -, é um novo baralhar dos dados a partir de um solo que criou em 2004, intitulado L’Heure et l’Axe, onde era trabalhada a ideia de transmissão e transformação da matéria. Esse solo, que a crítica de dança Christine Rodes definiu como “qualquer coisa de animal”, transformou-se em dueto e agora em quarteto (mais uma pianista), representando bem a ideia de “alimentação” que Sorin persegue no seu trabalho. Uma alimentação não só do seu próprio processo criativo (auto-fágico?), mas também do que o envolve e, sobretudo, consciente do observador: “Acredito numa partilha e na combinação de pontos de vista entre emissor e receptor. Procuro dar aos espectadores um objecto em que o corpo seja veículo de liberdade. Ou seja, privilegio o momento mais vivo de todos: o da observação de um espectáculo. Para depois poder evoluir. Para não cair em formulas.”, diz.

E depois há o corpo, que para esta coreógrafa se estende também a um outro objecto aparentemente inanimado, o acordeão. Há quinze anos que Geneviève Sorin interpreta e compõe para acordeão: “a música chega onde o corpo não chega. Está no domínio do sensível. Paira no ar, ao mesmo tempo que reduz o espaço de movimentação. Tudo se passa entre mim e o objecto, e por isso é mais íntimo. Depois há o ouvinte que observa, também, o modo como uma intérprete de dança se relaciona com um objecto.”

Na verdade, a coreógrafa distingue bem as suas funções na dança e na música, mas acredita que a sua relação com o corpo quando toca é consciente do modo como se movimenta. “A beleza da arte”, revela Sorin, “está no facto de ser elástica”. E acrescenta: “não vivo bem com ideais. E recuso as instituições. Ou a institucionalização. Procuro sempre um aprofundamento para perceber melhor aquilo que faz sentido. Seja na dança, na música…”. Na vida? “Na vida também, claro. O meu trabalho alimenta-se daquilo que observo, daquilo que sou, daquilo que quero dizer. A natureza humana do artista tem que o ‘obrigar’ a ser espontâneo. Não posso fazer nada que seja superficial. Foi por isso que saí de Paris, onde a cultura existe pela imagem que transmite e não por si mesma. O excesso mata. Podemos achar que estamos a dizer alguma coisa de relevante, mas nem vemos que não dizemos nada. Há que parar e perceber se o que fazemos tem alguma relevância”.

Esta posição clara e crente no papel da arte na sociedade, não como salvadora, mas como “contribuinte”, têm levado o trabalho de Geneviève Sorin a bairros mais carenciados de Marselha, propondo uma relação de igual para igual entre artistas e população. Porque “os espectáculos fazem pensar”, a coreógrafa orgulha-se que alguns desses projectos tenham vingado e hoje existam intérpretes que saíram, exactamente, de projectos de cariz social. “É preciso estar atento, muito atento, ao modo como arte e sociedade se combinam. Reside aí uma das funções da arte. Eu não faço nada se não for útil. E, por isso, livre.”

A mesma liberdade de que fala na criação artística, encontra-a nas ruas de Marselha, a cidade que a prende “e impede” de atravessar o mar. “Talvez um dia o faça. Quando esgotar tudo o que posso retirar desta força bruta que sustenta Marselha. Mas acho que estou em casa.”


A partir de uma conversa realizada a 24 Janeiro no Cent Soixante-Quatre/Companhia Geneviève Sorin, Marselha. Agradecimentos: Marseille Objectif Danse, Companhia Geneviève Sorin, Lucie Dehorme, Paulo Guerreiro. Foto de 3/4 Face de Eric Boudet.


Dossier Marselha:
A arte ao serviço do mundo - uma entrevista com Angelin Prejlocaj

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