segunda-feira, janeiro 30, 2006

Dossier Marselha (I)


Angelin Preljocaj

Coreógrafo, nasceu na Albânia em 1957. Exilado político em França desde novo, encontrou na dança um meio de exprimir discursos políticos e sociais. Criou 28 coreografias, sendo apresentado por diversas companhias, incluindo o extinto Ballet Gulbenkian. Herdeiro dos coreógrafos neo-clássicos e modernos, Angelin Preljocaj cria espectáculos onde a estética fundamenta o movimento, e a música e a simbologia se unem para produzir emoções que muitos classificam como intraduzíveis por palavras. Desde há 10 anos que instalou a sua companhia homónima no Centro Coreográfico Nacional de Aix-en-Provence, tornando-se o único coreógrafo, de todos os que dirigem os 19 Centros Coreográficos Nacionais em França, a conseguir afirmar-se internacionalmente junto da crítica e do público . Posição que cria os maiores anti-corpos na comunidade artística, dividida entre a persistência do seu trabalho e o aspecto comercial que isso pode atribuir à criação de dança contemporânea. O Melhor Anjo conversou com o coreógrafo, no intervalo de um workshop que deu ao projecto DANCE e publica hoje o resultado, dando início ao Dossier Marselha, onde se dará conta de alguns aspectos do mundo da dança no eixo Aix-en-Provence/Marselha.

Angelin Preljocaj - A arte ao serviço do mundo


Como é que se estrutura o seu pensamento sobre a dança e o aplica no processo criativo?

No que respeita à composição, esta surge muitas vezes de exercícios de improvisação, a solo ou em duetos, onde depois são fixadas partículas, constituindo material com o qual se aplicam novas directivas ou que simplesmente é passado para outros corpos. Sendo que este mecanismo de inversão do movimento não passa de uma perturbação da criação do mesmo, originando uma estética pré-concebida. Ou seja, uma estética da função, que é o que me interessa. Não tanto pela forma em si, mas pelo modo como se relacionam essas mesmas formas. Sendo que não existem hierarquias no movimento (o movimento vale por si, seja ele grande ou pequeno), tudo é possível, desde que se façam escolhas. Criam-se, assim, sistemas de coerência do movimento, princípios de composição, que mais tarde, agregados à intuição artística, permitem a criação coreográfica. Esta criação pretende sempre refutar a perpetuação de imagens pré-concebidas pela academia. Ou seja, busca-se a originalidade.

Onde fica, então, o papel do intérprete e a sua margem de criação, num sistema tão complexo e, aparentemente, definitivo?

Essa é uma questão inteiramente ligada à personalidade e especificidade de cada coreógrafo. Mas o intérprete encontra-se, sempre, num confronto entre o rigor e a liberdade. E a liberdade no trabalho só existe quando confrontada com um rigor. Mesmo no que podemos definir como caos há um rigor, uma ordem.

Dentro de uma companhia, vista muitas vezes, como é o caso do Ballet Prejlocaj, como uma instituição, como é que se evita a cedência ao lado funcional, ou se quisermos, à necessidade de produzir por razões burocráticas?

No meu caso a institucionalização surgiu pelo trabalho de uma equipa e não por uma nomeação. Sendo que a instituição está ao serviço do artista, na maior parte dos casos o problema é que o artista é absorvido pelas instituições já constituídas e nas quais ele começa a tomar parte. Consciente ou inconscientemente fica ao serviço da instituição. No Ballet Prejlocaj tivemos sempre em conta a questão de quem está ao serviço de quem, sendo que no nosso caso a pressão é quase sempre feita pela base artística e não pela base funcional, embora por vezes a máquina burocrática exija o contrário.

E entretanto passaram 10 anos desde que se instalaram em Aix-en-Provence.

Sim. Eu penso que em Aix conseguimos criar uma dinâmica e uma energia que é força de atracção. É como os planetas sobre os quais giram outros corpos. Tem a ver com a densidade. Eu penso que as companhias têm o mesmo efeito. Atraem coisas ao seu redor.

Mesmo quando a comunidade, ou parte dela, lhe critica a concentração de apoios...

Essencialmente existe uma falta de respeito desses outros criadores, pois não se pode criticar o trabalho de um criador só porque este tem mais apoios ou vice-versa. O que é a diversidade e a diferença? Onde é que ela existe? Como é que se organiza? Quando se fala numa ecologia fala-se também de uma organicidade no movimento e no espectáculo.

Razão pela qual na participação nos debates da última edição do festival Hivernales d'Avignon falou de uma falta de solidariedade na comunidade da dança?

É aí que digo que não há solidariedade, o mundo é bastante grande e permite a existência de diferentes realidades. Eu acredito que isto é uma questão de ecologia, nós temos que fazer com que aquilo que criamos e o ambiente estejam em harmonia...

Penso em dois exemplos concretos. Um, o "caso Avignon 2005" e outro o fim do Ballet Gulbenkian. Relativamente ao primeiro, como é que essa ideia de ecologia pode absorver discursos artísticos denominados como "híbridos", como aqueles que foram tentados por, e só a título de exemplo, Mathilde Monnier ou Christian Rizzo, nos quais o corpo deixava de ser o único elemento a ser testado, dando primazia ao texto, à palavra e até procurando incluir a recepção no processo criativo?

Para mim é difícil dizer ou criar limites nos outros. Tudo pode ser dança, mas tem de existir um pensamento que justifique o movimento. Acho que cada um cria os seus próprios limites. Mas, de uma maneira geral, e em relação a Avignon, acho que foi uma má aposta dos directores do Festival. Só isso. Não vêm daí mal ao mundo. E certamente menos ao mundo da dança. É como a ciência. Há a física quântica e a da relatividade. Ambas se completam para gerar mecanismos de força que sustentam um sistema criativo.

E quanto ao Ballet Gulbenkian, que se extinguiu o ano passado (e onde apresentou duas coreografias [Les Noces (1999 e 2000), Annonciation (2002)]), como se equilibram escolhas com necessidades? E como pode a comunidade reagir a isso?

Fiquei chocado, claro. Mas o problema do Ballet Gulbenkian é que não sendo uma companhia do Estado, não se pode dizer ou fazer nada. Foi uma Fundação muito generosa para com a dança durante muito tempo. Eu vi a companhia em três estados diferentes sempre sob a direcção de Iracity Cardoso, que tinha um profundo respeito pelos bailarinos. E neles existia um lado muito físico que me agradava bastante, não só pela base bastante sólida do clássico, mas pela fisicalidade selvagem/animal que os caracterizava. Mas agora que foram tomadas estas decisões, nada se pode fazer..

Mas apesar disso acredita que a arte pode fazer parte das defesas do mundo.

Sim, claro. A arte e o artista. Não sei se a arte pode salvar vidas [risos], mas acho que pode salvar parcelas do mundo, pode salvar casos pontuais... uma cidade por exemplo.

E a si?

A mim? [pausa longa] Sim, posso dizer que sim. Mas não penso muito nisso.


A consultar:
Le Cas Avignon 2005 - regards critiques (edição de Georges Banu e Bruno Tackles)
Où va la danse? - l'aventure de la danse par ceux qui l'ont vécue (edição Amélie Grand e Philippe Verrièle)
Video e fotos de Annonciation
La danse est un art de combat - entrevista a Angelin Preljocaj

Entrevista realizada a 12 Janeiro 2006 na Escola Superior de Dança de Marselha.
Agradecimentos: Marion Abeille, Mónica Guerreiro e Paulo Guerreiro